SAES, Do Marx de
1843-1844 ao Marx das obras históricas: duas concepções distintas de Estado.
Referência: SAES, Décio. Do Marx de 1843-1844 ao Marx das obras históricas: duas
concepções distintas de Estado. In: Estado e Democracia: ensaios teóricos.
Coleção trajetória 1, IFCH/Unicamp, 1994, p. 56-73.
TEORIA DO ESTADO EM HEGEL: Hegel em seu livro Princípio da Filosofia do
direito, de 1921, pretende demonstrar que o Estado moderno, no seu modo de
organização interna, e nas suas relações com a sociedade, é manifestação da
Razão Humana, tentando se diferenciar assim tanto dos que procuram uma gênese
do Estado (contratualistas – se preocupam com a relação entre indivíduo e poder
político) quanto os que propõem modelos ideais de Estado (Kant).
Um dos pontos
analisados por Hegel são as características do Estado burguês recém
estabelecido: A abertura do aparelho do
Estado (burocracia civil, militar, entre outros), a classe exploradora não monopoliza os cargos, agora
eles são abertos para todas as classes, através de provas. Assim, não há
obrigatoriedade de coincidência entre burocracia de Estado e classe dominante
(proprietárias).
A partir desta
separação posta por Hegel, houve duas formas de interpretação
1ª) o que Poulantzas chama de ‘autonomia relativa’ do Estado capitalista
diante das relações de produção. Ponto com o qual Saes não concorda;
2ª) a ‘autonomia relativa do aparelho de Estado capitalista (burocracia de
Estado) diante da classe dominante.
®
O que Hegel entende pelo conceito de classes? (p.57)
Para Saes, Hegel não conseguiu se desvencilhar da visão jusnaturalista.
Para Hegel, a sociedade civil se decompõe em classes. Mas, as classes não são,
para Hegel, coletivos ocupando posições polares quanto a propriedade dos meios
de produção, correspondem sim a diferentes ramos da atividade econômica
(agricultura, indústria), daí falar em setores: primário, secundário e
terciário. Hegel não identifica nenhum interesse comum que soldem os membros
das classes. A sociedade civil seria “o domínio das carências e dos fins
particulares/egoístas” (Saes, p.58).
Na sociedade civil cada indivíduo persegue seu interesse particular, assim
cabe ao Estado Moderno (burocracia) defender o interesse geral. Hegel não
afirma que o interesse de uma classe prevaleça no processo de execução da
política do Estado, pois estão sob o comando da burocracia do Estado, que
atende ao interesse geral.
Assim na teoria de Hegel há a ascendência do interesse geral sobre os
interesses particulares, “encarando ambos os termos como formas sem conteúdos”
(conceitos).
Hegel elogia a produção de Rousseau, pois mesmo que Rousseau permaneça
apegado a relação entre indivíduo e poder político, dá um tratamento formalista
a esta questão, ou seja, a ‘vontade geral’ não tem objeto determinado. Hegel
colocará esta visão formalista a serviço de seu interesse: justificar a
dominação da burocracia sobre a sociedade civil.
®
Como Hegel entende o Estado?
Em 1821, ele escreveu Princípios de filosofia do direito, no qual
apresentou a sua teoria do Estado. Para ele:
1. O Estado era a realização da Razão ou do
Espírito absoluto;
2. o Estado prussiano era a forma acabada (e superior) do Estado moderno;
3. o Estado era dirigido por uma classe universal
(a burocracia) à qual caberia descobrir e concretizar o “interesse geral” da sociedade;
4. a burocracia tinha a incumbência de defender o “interesse geral” em
contraposição aos “interesses particulares e egoístas”, localizados na sociedade civil. Esta seria o “reino das carências
individuais” e dos “fins particulares egoístas”;
5. a sociedade civil era formada por classes.
Mas estas classes não eram grupos de indivíduos ocupando posições distintas e
contrapostas em relação à propriedade dos meios de produção;
6. as classes corresponderiam aos grupos de indivíduos vinculados aos
diferentes ramos das atividades econômicas (agricultura, comércio, atividades
burocráticas) – na classe industrial estariam incluídos operários e patrões; na
classe agrária os latifundiários e os camponeses.
Teoria do Estado e Marx: Uma considerável parte da reflexão de Marx sobre o Estado moderno se
encontra condensada nas suas obras juvenis – Crítica à filosofia do direito
(1843), A Questão Judaica (1843) e Introdução à crítica da filosofia do direito
de Hegel (1843-1844).
A primeira grande obra política de Marx foi justamente uma contestação à
teoria política de Hegel, especialmente à sua concepção sobre o Estado moderno.
Na sua Crítica à filosofia do direito de Hegel mostrou
muito bem o grau de assimilação/rejeição às teses do mestre. O jovem
Marx, ao mesmo tempo em que se apropria seletivamente do pensamento de Hegel
nega-o. Ali escreveu: “Hegel não deve ser
censurado por descrever a essência do Estado moderno tal como ele é e sim por
apresentar o que existe como essência do Estado moderno”. Ou seja, o que
reprovaria seriam as suas conclusões político-práticas de “apresentar o que
existe como a essência do Estado” ou a realização da Razão. A essência do Estado prussiano era apontada como essência do
Estado em geral – seu estágio superior. Assim, deveria ser preservado.
Uma visão conservadora que ia frontalmente contra seu próprio método dialético.
® Marx aceitava a descrição
hegeliana: separação da sociedade civil e sociedade política
(= Estado). Para ele, parecia correto que a sociedade civil representasse “o
reino das carências individuais e dos fins particulares egoístas”.
O Estado era
visto como um corpo burocrático que, aparentemente, se encarregaria de
representar os interesses gerais de toda a sociedade. Mas isto seria o
resultado de um longo e complexo processo de alienação da própria essência
humana.
1º ponto de mudança de Marx: O jovem Marx vai entender a burocracia não como
representante dos interesses gerais, mas sim dos interesses próprios. No
decorrer das obras de Marx, a burocracia estatal não representaria o “interesse
geral” da sociedade, nem seria uma “classe universal”. Ela tenderia a ocultar
os seus interesses particulares de corporação, o “espírito de corpo”. De
positivo, na visão de Hegel, o Estado passava a ser visto como algo negativo a
ser superado pela ação revolucionária.
2º ponto de
mudança de Marx: Na concepção do jovem Marx o
Estado, embora fosse criação do homem real/concreto, se colocava como algo
separado e acima dele, oprimindo-o. O Estado que aparecia
como elemento “fundador” da sociedade civil para Hegel, na verdade não passaria
de seu produto mais típico. Nessa lógica, o Estado perdia seu status de
“sujeito” e se transformava em “predicado”
Segundo Hegel, “o povo sem o monarca era sem articulação do todo (…) era
massa sem forma”. Para Marx, ao contrário, não era o Estado que fundaria o povo
e lhe daria sentido e articulação, mas era o povo (enquanto conjunto de homens
reais/concretos) que construiria as bases do Estado moderno: “assim com a
religião não criou o homem, o homem criou a religião, também a constituição não
criou o povo, mas o povo criou a constituição”. Continuou: “Se Hegel tivesse
partido dos sujeitos reais como base do Estado, não teria a necessidade de
deixar o Estado transformar-se em sujeito de uma maneira mística.”
O jovem Marx era um opositor implacável ao Estado moderno, em geral, e do
Estado prussiano, em particular. O Estado seria um corpo burocrático que
sufocaria a sociedade civil. A instauração de uma verdadeira democracia
passaria, necessariamente, pela supressão do Estado burocrático.
® Qual a razão para que o
pensamento do jovem Marx, embora crítico e revolucionário, ainda se colocasse
no campo das concepções burguesas e pequeno-burguesas de Estado?
Porque faltava a ele a compreensão de que a sociedade civil se dividia em
classes sociais com interesses contraditórios e antagônicos. O Estado não representava ou refletiria apenas os seus
interesses particulares de corporação (teoria do Estado-sujeito), mas os interesses de classes. Ele seria um instrumento
a serviço das classes economicamente dominantes, para assegurar a reprodução de
determinadas relações sociais de produção.
Como afirmou Décio Saes, enquanto Marx não se libertasse dos estreitos
limites do jogo entre interesses particulares (localizados na sociedade civil)
e interesse geral (ainda que ilusório, representado pelo Estado e a burocracia)
continuaria preso à velha problemática de raiz hegeliana.
O primeiro artigo – do único número da revista Anais Franco-alemães – foi
uma contestação mordaz à obra de seu antigo amigo Bruno Bauer intitulada A Questão Judaica: Aqui aparece um avanço
na compreensão do Estado. Quando analisou as suas
premissas incluiu entre elas a propriedade privada. No entanto, a
contribuição foi apenas parcial. Ali não apresentou qualquer distinção
fundamental entre os elementos materiais (econômicos) e os elementos
espirituais no processo de constituição dos estados modernos. Não estabeleceu o
primado das relações econômicas sobre os elementos espirituais. Coisa que faria
alguns anos mais tarde na obra A Ideologia Alemã.
A França, naquele momento, era a capital da revolução social. Nela se
agitavam as principais correntes do pensamento democrático-radical. Cresciam,
impulsionadas pelo desenvolvimento desumano do capitalismo, as jovens correntes
comunistas. Multiplicavam-se as organizações políticas operárias, em geral
clandestinas. Entre elas estava a Liga dos Justos, composta por
operários-artesãos alemães imigrados. Foi através dela que Marx entrou, pela
primeira vez, em contato com a jovem e combativa classe operária francesa.
Foi dentro deste ambiente efervescente que ele escreveu o segundo artigo
para os Anais Franco-Alemães: “Introdução à crítica da
filosofia do direito”. Este representou um marco importante no processo
de transição do jovem Marx para o Marx maduro das obras clássicas. Aparecia, pela primeira vez, nas suas reflexões, a figura
do proletariado e seria definido o papel histórico-universal desta
classe no processo de transformação revolucionária da sociedade burguesa.
A Alemanha, segundo o texto, não necessitava de uma revolução unicamente
política, que deixasse de pé os pilares do edifício social. Precisava de outro
tipo de revolução, mais radical, que representasse
verdadeiramente a emancipação humana. Precisava de uma revolução social.
A introdução do proletariado nas considerações de Marx criou uma profunda
contradição no seu pensamento, abrindo nele uma brecha que deveria ser preenchida:
entre aquele que aderia de corpo e alma ao movimento operário revolucionário
(comunista) em ascensão e aquele intelectual ainda preso, em muitos sentidos, a
uma concepção não proletária de mundo: o hegelianismo.
As Obras de Transição: obras escritas entre 1844 e
1848 – A sagrada família (1844), Manuscritos filosóficos econômicos (1844), A
ideologia alemã (1845) e Miséria da filosofia (1847). Dentre todos estes
escritos, Ideologia alemã é o mais significativo, pelo menos no que diz
respeito ao desenvolvimento de uma concepção marxista de Estado. Segundo o Marx de 1845: “todas as lutas no interior do Estado
são apenas as formas ilusórias nas quais se desenvolveriam as lutas reais entre
diferentes classes”. Continuou ele: “O Estado não é nada mais do que a
forma de organização que os burgueses necessariamente adotam para garantir a
sua propriedade e seus interesses. O Estado é a forma pela qual os indivíduos
de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns”.
Neste momento, Marx
rompe com a velha problemática (relação sociedade civil versus sociedade
política, indivíduo versus Estado) pela nova problemática (da relação entre a
sociedade cindida em classes sociais antagônicas e o Estado, enquanto
instrumento nas mãos das classes dominantes para fazer valer seus interesses
comuns).
Uma observação: aqui a sociedade civil não é mais entendida como
reino das carências individual-egoístas, mas como conjunto de relações
econômicas, onde se articulam as classes sociais em luta.
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