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A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA


Apostila Parte 1: http://www.scribd.com/doc/71646281/Scan-Doc0040 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado);

Apostila Parte 3:  http://www.scribd.com/doc/73691190/Scan-Doc0042 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado);

Apostila Parte 2:
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

REALE, G; ANTISSERI, D. História da filosofia: patrística e escolástica. v.2. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2005.


1. O PENSAMENTO CRISTÃO: A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA

"Quem não se ilumina com o esplendor de todas as coisas criadas, é cego. Quem não desperta com tantos clamores, é surdo. Quem, com todas essas coisas, não se põe a louvar a Deus, é mudo. Quem, a partir de indícios tão evidentes, não volta a mente para o primeiro princípio, é tolo" (São Boaventura).

A queda do Império Romano foi causada por uma série de problemas internos que fragilizaram o Império e o colocaram à disposição de invasões de outros povos. Apesar de ser uma obviedade, todo Império começa a decair após alcançar o seu apogeu, e com Roma não foi diferente.
Com relação às invasões, é importante notar que a região européia do império passou a ser ocupada por povos nômades, de diferentes origens e em alguns casos, que realizavam um processo de migração, ou seja, sem a utilização de guerra contra os romanos. Vários desses povos foram considerados aliados de Roma e o Império Romano foi dividido por causa de invasores em quase toda parte de Roma.
Em meio ao esfacelamento do império romano, decorrente, em grande parte, das invasões germânicas, a igreja católica conseguiu manter-se como instituição social. Consolidou sua organização religiosa e difundiu o cristianismo, preservando, também muitos elementos da cultura greco-romana.
Apoiada em sua crescente influência religiosa, a igreja passou a exercer importante papel político na sociedade medieval. Desempenhou, às vezes, a função de órgão supranacional, conciliador das elites dominantes, contornando os problemas das rivalidades internas da nobreza feudal. Conquistou, também, vasta riqueza material: tornou-se dona de aproximadamente um terço das áreas cultiváveis da Europa ocidental, numa época em que a terra era a principal base da riqueza.
O Cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano em 380. O Império Romano do Ocidente cairia cerca de 100 anos depois. Entre os séculos II e III, séculos em que o Cristianismo ganhou cada vez mais adeptos entre os Romanos, o Império começou a sentir os sinais da crise com a diminuição do número de escravos, as rebeliões nas províncias, a anarquia militar e as invasões bárbaras.

1.1 CONFLITOS E CONCILIAÇÃO ENTRE FÉ E RAZÃO

"Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganadoras especulações da “filosofia”, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo" (São Paulo).

No plano cultural, a igreja exerceu ampla influência, traçando um quadro intelectual em que a fé cristã se tornou o pressuposto (isto é, o antecedente necessário) de toda a vida espiritual.
Em que consistia essa fé? Consistia na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas por Deus aos homens. Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia) e interpretadas segundo a autoridade da igreja.
De acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada das verdades reveladas ¾ especialmente aquelas verdades consideradas essenciais ao homem e que dizem respeito a sua salvação. Nesse sentido, afirmava Santo o Ambrósio (340-397, aproximadamente): "Toda a verdade, dita por quem quer que seja, é do Espírito Santo".
Isso significava que toda investigação filosófica ou científica não poderia, de modo algum, contrariar as verdades estabelecidas pela fé católica. Em outras palavras, os filósofos não precisavam mais se dedicar a busca da verdade, pois ela já teria sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, apenas, demonstrar racionalmente as verdades da fé.
Não foram poucos, porém, aqueles que dispensavam até mesmo essa comprovação racional da fé. Foi o caso de religiosos que desprezavam a filosofia grega, sobretudo porque viam nessa forma pagã de pensamento uma porta aberta para o pecado, a dúvida, o descaminho e a heresia.
Por outro lado, surgiram pensadores cristãos que defenderam o conhecimento da filosofia grega, percebendo a possibilidade de utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo.
Conciliado com a fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria a igreja enfrentar os descrentes e derrotar os hereges com as armas racionais da argumentação lógica. O objetivo era convencer os descrentes, tanto quanto possível pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistérios divinos, somente acessíveis à fé.
Nesse contexto, a filosofia medieval pode ser dividida em quatro momentos principais:
• o dos padres apostólicos, do início do cristianismo (séculos I e II), entre os quais se incluem os apóstolos, que disseminavam a palavra de Cristo, sobretudo em relação a temas morais. Entre estes se destaca a figura de São Paulo pelo volume e valor literário de suas epístolas (cartas escritas pelos apóstolos);
• o dos padres apologistas (séculos III e IV), que faziam a apologia do cristianismo contra a filosofia pagã. Entre os apologistas destacam-se Orígenes, Justino e Tertuliano, este é o mais intransigente na defesa da fé contra a filosofia grega;
• o da Patrística (de meados do século IV ao século VIII), no qual se busca uma conciliação entre a razão e a fé e se destacam a figura de Santo Agostinho e a influência da filosofia platônica;
• o da escolástica (do século IX a XVI) no qual se buscou uma sistematização da filosofia cristã, sobretudo a partir da interpretação da filosofia de Aristóteles, e se destaca a figura de Santo Tomás de Aquino.
A característica fundamental dessa filosofia medieval é a ênfase nas questões teológicas, destacando-se temas como: o dogma da trindade, a encarnação de Deus-filho, a liberdade e a salvação, a relação entre fé e razão.
Destacaremos os dois momentos mais importantes da filosofia medieval ¾ a patrística e a escolástica. Entretanto, antes de entrarmos propriamente nesses temas, precisamos perceber a influência dos conceitos da Bíblia sobre a sociedade.

1.2 A BÍBLIA, SUA MENSAGEM E SUAS INFLUÊNCIAS SOBRE O PENSAMENTO OCIDENTAL.

Com o nome de bíblia (do grego biblía = "livros") indicam-se 73 livros considerados inspirados e distintos em Antigo Testamento (46 livros) e Novo Testamento (27 livros).      

1.2.1 Estrutura e significado da Bíblia.

O Antigo Testamento divide-se por sua vez em livros históricos, livros didáticos, livros proféticos. Os primeiros cinco livros históricos (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) são os livros da lei ou Pentateuco.
O Novo Testamento é composto pelos quatro evangelhos, pelas cartas de Paulo, pelas cartas dos apóstolos e pelo apocalipse.
"Testamento" traduz o termo grego diathéke e indica o pacto ou aliança que Deus ofereceu a Israel.
A mensagem bíblica mesmo que não tenha sido inspirada pela razão e sim pela fé, teve tal impacto histórico e incidiu de modo tão profundo na concepção do mundo e da natureza do homem, que deve ser considerada também do ponto de vista filosófico.
Neste sentido, ela trouxe algumas contribuições revolucionárias para a história do pensamento.

1. 2. 2 As idéias bíblicas que influíram sobre o pensamento ocidental.

As mais significativas contribuições filosóficas da mensagem bíblica são:
1) o conceito de monoteísmo que substitui o politeísmo grego;
2) o criacionismo a partir do nada, que faz o ser depender de um ato da vontade de Deus, e que se contrapõe à proibição de Parmênides da geração do ser a partir do não ser;
3) uma concepção do mundo fortemente antropocêntrica que não tem precedentes na filosofia helênica, que foi mais cosmocêntrica;
4) uma interpretação da lei moral diretamente ligada à vontade de Deus: Deus seria a fonte definitiva da lei moral e o dever do homem estaria em obedecer seus mandamentos. Para o grego, ao contrário, a lei teria o seu fundamento na natureza e a ela também Deus estaria vinculado;
5) uma desobediência à lei que teria causado a queda do homem;
6) o resgate desta situação depende não do homem, mas da iniciativa gratuita de Deus, a para os gregos ¾ em particular para os órficos e para os filósofos que neles se inspiraram ¾ dependeria, ao contrário, apenas do homem;
7) a Providência de que fala a bíblia, diversamente da grega (em particular socrática e estóica), dirige-se ao homem individual; a ela está ligada à Redenção operada por Deus por amor da humanidade;
8) esta atenção de Deus pelo homem revoluciona completamente o conceito do amor em vários sentidos: primeiramente, porque o amor cristão (ágape) é característica eminentemente divina, enquanto para os gregos  Deus era amado é não amante; em segundo lugar porque a dimensão do eros helênico era aquisitiva enquanto a do ágape cristão é donativa;
9) tal inversão não diz respeito apenas ao tema do amor, mas a toda a série dos valores dos gregos, que o cristianismo ilumina sobre a base do discurso das bem-aventuranças, em que se privilegia a dimensão da humildade e da mansidão;
10) igualmente importante é a mudança de perspectiva na escatologia ¾ que não está mais ancorada apenas no dogma da imortalidade da alma, mas também no da ressurreição dos corpos;
11) é significativo, por fim o novo sentido da história, a como progresso para a salvação e para a realização do Reino de Deus: o desenvolvimento da história segundo os gregos têm um andamento circular (a história não tem início nem fim, mas retorna sempre idêntica), enquanto o bíblico-cristão acontece segundo um trajeto retilíneo, que tem um fim e uma consumação (o juízo universal).
Tendo contextualizado as influências bíblicas na sociedade medieval, podemos passar a estudar a patrística.

1.3 PATRÍSTICA: MATRIZ PLATÔNICA NOS ARGUMENTOS DA FÉ

No processo de desenvolvimento do cristianismo, tornou-se necessário explicar seus preceitos às autoridades romanas e ao povo em geral. A igreja católica sabia que esses preceitos não podiam simplesmente ser impostos pela força. Tinham de ser apresentados de maneira convincente, mediante um trabalho de pregação e conquista espiritual.
Foi assim que os primeiros padres da igreja se empenharam na elaboração de diversos textos sobre a fé e a revelação cristã. O conjunto desses textos ficou conhecido como patrística, por terem sido escritos principalmente por esses grandes padres da igreja. Uma das principais correntes da filosofia patrística, inspirada na filosofia greco-romana, tentou munir a fé de argumentos racionais, ou seja, buscou a conciliação entre o cristianismo e o pensamento pagão. Seu principal expoente foi Agostinho, posteriormente consagrado santo pela igreja católica.

1.3.1 Santo Agostinho: o pecado é o afastamento de Deus

"Compreender para crer, crer para compreender" (Santo Agostinho)

Aureliano Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste, província romana situada na África, e faleceu em  Hipona, hoje localizadaa na Argélia. Nessa última cidade ocupou cargo de bispo da igreja católica.
Até completar 32 anos, no entanto Agostinho não era cristão. Havia tido até uma vida voltada aos prazeres do mundo e, de uma ligação amorosa e ilícita para época, nascera-lhe o filho Adeodato. Havia sido também professor de retórica em escolas romanas.
Em sua formação intelectual, Agostinho despertou primeiramente para a filosofia com a leitura de Cícero. Posteriormente, deixou-se influenciar pelo maniqueísmo, doutrina persa que afirmava ser o universo dominado por dois grandes princípios opostos, o bem e o mal, mantendo uma incessante luta entre si. Mais tarde, já insatisfeito com o maniqueísmo, viajou para Roma e Milão, entrando em contato com o ceticismo e, depois, com o neoplatonismo, movimento filosófico do período greco-romano, desenvolvido por pensadores inspirados em Platão, que se espalhou por diversas cidades do império romano, sendo marcado por sentimentos religiosos e crenças místicas.
Cresceu e se aprofundou, então, em Agostinho uma grande crise existencial, uma inquietação quase desesperada em busca de sentido para vida. Foi nesse período crítico que ele se encontrou com Santo Ambrósio, bispo de Milão, sentindo-se extremamente atraído por suas pregações. Pouco tempo depois, converteu-se ao cristianismo, tornando-se seu grande defensor pelo resto da vida.

1.3.2 A superioridade da alma sobre o corpo

Em sua obra, Agostinho argumenta em favor da superioridade da alma humana, isto é, a supremacia do espírito sobre o corpo, a matéria. Para ele, a alma teria sido criada por Deus para reinar sobre o corpo, para dirigi-lo à prática do bem.
O homem pecador, entretanto, utilizando-se do livre-arbítrio, costumaria inverter essa relação fazendo o corpo assumir o governo da alma. Provocaria, com isso, a submissão do espírito a matéria, o que seria, para ele, o equivalente a subordinação do eterno ao transitório, da essência a aparência.
A verdadeira liberdade estaria na harmonia das ações humanas com a vontade de Deus. Ser livre é servir a Deus, diz Agostinho, pois o prazer de pecar é a escravidão.

1.3.3 Boas obras ou graça divina?

Segundo o filósofo, o homem que trilha a via do pecado só consegue retornar aos caminhos de Deus e da salvação mediante a combinação de seu esforço pessoal de vontade e a concessão, imprescindível, da graça divina. Sem a graça de Deus, o homem nada pode conseguir. Mas nem todas as pessoas deverão receber essa graça, mas somente os predestinados à salvação.
A questão da graça, tal como colocada pelo filósofo, marcou profundamente o pensamento medieval cristão. E a doutrina da predestinação à salvação foi, posteriormente, adotada por alguns ramos da teologia protestante (reforma protestante). Na mesma época de Agostinho, outro teólogo, Pelágio, afirmava que a boa vontade e as boas obras humanas seriam suficientes para a salvação individual. Era a doutrina do pelagianismo.
Agostinho colocou-se contra essa doutrina e, no concílio de Cartago do ano de 417, o papa Zózimo condenou o pelagianismo como heresia e adotou a concepção agostiniana de necessidade da graça divina, doada livremente por Deus aos seus eleitos.
A condenação do pelagianismo se explica pelo fato de que se conservava a noção grega de autonomia da vida moral humana, isto é, a noção de que o homem pode salvar-se por si só, sendo bom e fazendo boas obras, sem a necessidade da ajuda divina. Essa noção se chocava com a idéia de submissão total do homem ao Deus cristão, defendida pela igreja. "O fato de assim a igreja ter se pronunciado por tal doutrina assinalou o fim da ética pagã e de toda a filosofia helênica".
Uma conseqüência disso é a forma como passa a enfatizar a subjetividade, a individualidade. Enquanto na filosofia grega o indivíduo se identificava como cidadão (isto é, o homem social, político), a filosofia cristã agostiniana enfatiza no indivíduo sua vinculação pessoal com Deus, a responsabilidade de cada indivíduo pelos seus atos e exalta a salvação individual.

1.3.4 Liberdade humana e pecado

Outro aspecto fundamental da filosofia agostiniana é o entendimento de que a vontade é uma força que determina a vida e não uma função específica ligada ao intelecto, tal como diziam os gregos. Agostinho contrapõe-se, dessa forma, ao intelectualismo moral, que teve sua expressão máxima em Sócrates.
Isso significa que, de acordo com Agostinho, a liberdade humana é própria da vontade e não da razão. E é nisso que reside a fonte do pecado. O indivíduo peca porque usa de seu livre-arbítrio para satisfazer uma vontade má, mesmo sabendo que tal atitude é pecaminosa. Nas palavras de Agostinho, vejamos as causas mais comuns do pecado:
O ouro, a prata, os corpos belos e todas as coisas são dotados de um certo atrativo. O prazer de conveniência que se sente no contato da carne influi vivamente. Cada um dos outros sentidos encontram nos corpos uma modalidade que lhes corresponde. Do mesmo modo a honra temporal e o poder de mandar e dominar encerram também um brilho, donde igualmente nasce a avidez e a vingança. (...) A vida neste mundo seduz por causa de uma certa medida de beleza que lhe é própria, e da harmonia que tem com todas as formosuras terrenas. Por todos esses motivos e outros semelhantes, comete-se o pecado, porque ele, pela propensão imoderada para os bens inferiores, embora sejam bons, se abandonam outros melhores e mais elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à vossa verdade e à vossa lei" (AGOSTINHO. Confissões, p.33).
Por isso, Agostinho afirma que o homem não pode ser autônomo em sua vida moral, isto é, deliberar livremente sobre sua conduta. No entanto, como o que conduz seus atos é a vontade e não a razão, o homem pode querer o mal e praticar o pecado, motivo pelo qual ele necessita da graça divina para salvar-se.

1.3.5 Precedência da fé sobre a razão

Agostinho também discutiu a diferença existente entre fé cristã e razão, afirmando que a fé nos faz crer em coisas que nem sempre entendemos pela razão: "creio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que creio conheço".
Baseando-se no profeta bíblico Isaías, dizia ser necessário crer para compreender, pois a fé ilumina os caminhos da razão, e que a compreensão nos confirma a crença posteriormente. Isso significa que, para Agostinho, a fé revela verdades ao homem de forma direta e intuitiva. Vem depois a razão esclarecendo aquilo que a fé já antecipou.

1.3.6 A herança do helenismo

O pensamento agostiniano (de Agostinho) reflete, em grande medida, os principais passos de sua trajetória intelectual anterior à conversão ao catolicismo, que teve a influência do helenismo. Vejamos alguns elementos:
• do maniqueísmo ficou uma concepção dualista no âmbito moral, simbolizada pela luta entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a alma e o corpo. Nesse sentido, dizia que o homem tem uma inclinação natural para o mal, para os vícios, para o pecado. Insistia em que já nascemos pecadores (pecado original) e somente um esforço consciente pode nos fazer superar essa deficiência "natural". Considerando o mal como o afastamento de Deus, defendia a necessidade de uma intensa educação religiosa, tendo como finalidade reduzir essa distância.
• do ceticismo ficou a permanente desconfiança nos dados dos sentidos, isto é, no conhecimento sensorial, conhecimento que nos apresentam uma multidão de seres mutáveis, flutuantes e transitórios.
• do platonismo, Agostinho assimilou a concepção de que a verdade, como conhecimento eterno, deveria ser buscada intelectualmente no "mundo das idéias". Por isso defendeu a via do auto-conhecimento, o caminho é dar anterioridade, como instrumento legítimo para a busca da verdade. Assim, somente o íntimo de nossa alma, iluminada por Deus, poderia atingir a verdade das coisas. Da mesma forma que os olhos do corpo necessitam da luz do sol para enxergar os objetos do mundo sensível, os "olhos da alma" necessitam da luz divina para visualizar as verdades eternas da sabedoria.

2. ESCOLÁSTICA: INSPIRAÇÃO ARISTOTÉLICA NOS CAMINHOS DE DEUS

No século VIII, Carlos magno, rei dos francos coroado imperador no ocidente no ano 800 pelo papa leão III, organizou o ensino e fundou escolas ligadas às instituições católicas. Com isso, a cultura greco-romana, guardada nos mosteiros até então, voltou a ser divulgada, passando a ter uma influência mais marcante nas reflexões da época. Era o período da renascença carolíngia.
Adotou-se nessas escolas a educação romana como modelo. Começaram a ser ensinadas matérias como gramática, retórica e dialética (o trivium) e geometria, aritmética, astronomia e música (o quadrivium). Todas elas estavam, no entanto, submetidas à teologia.
Foi assim, no ambiente cultural dessas escolas e das primeiras universidades do século XI, que surgiu uma produção filosófico-teológica denominada escolástica (palavra derivada de escola).
A partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de forma profunda no pensamento escolástico, marcando-o definitivamente. Isso se deveu à descoberta de muitas obras de Aristóteles, desconhecidas até então, e à tradução para o latim de algumas delas, diretamente do grego.
No período escolástico, a busca de harmonização entre a fé cristã e a razão manteve-se como problema básico de especulação filosófica. Nesse contexto, a escolástica pode ser dividida em três fases:
• a primeira fase (do século IX ao fim do século XII) ― caracterizada pela confiança na perfeita harmonia entre fé e razão;
• Segunda fase (do século XIII ao princípio do século XIV) ― caracterizada pela elaboração de grandes sistemas filosóficos, merecendo destaque as obras de Tomás de Aquino. Nessa fase, considera-se que a harmonização entre fé e razão pode ser parcialmente obtida;
• Terceira fase (do século XIV até o século XVI) ― decadência da escolástica marcada por disputas que realçam as diferenças entre fé e razão.
Além de apresentar o traço fundamental da filosofia medieval, que é a referência às questões teológicas, a escolástica promoveu significativos avanços no estudo da lógica. Um dos filósofos que mais contribuiu para o desenvolvimento dos estudos lógicos nesse período foi o romano Boécio, que embora tenha vivido de 480 a 524, é considerado o primeiro dos escolásticos. Ele aperfeiçoou o quadrado lógico, sistema de relações entre afirmativas que fornece a base lógica para garantir a validade de certas formas elementares de raciocínio. Também foi o primeiro a introduzir a questão dos universais, problema filosófico longamente discutido por todo o período da escolástica.

2.1 A QUESTÃO DOS UNIVERSAIS: O QUE HÁ ENTRE AS PALAVRAS E AS COISAS

O método escolástico de investigação, segundo o historiador francês contemporâneo Jacques Lê Goff, privilegiava o estudo da linguagem (o trivium) para depois passar para o exame das coisas (o quadrivium). Desse método surgiu a seguinte pergunta: qual a relação entre as palavras e as coisas?
Rosa, por exemplo, é o nome de uma flor. Quando a flor morre, a palavra rosa continua existindo. Nesse caso, a palavra fala de uma coisa inexistente, de uma idéia geral. Mas como isso acontece? O grande inspirador da questão foi o filósofo neo-platônico Porfírio (234-305, aproximadamente), em sua obra Isagoge:
Não tentarei enunciar se os gêneros e as espécies que existem por si mesmos ou na pura inteligência, nem, no caso de subsistirem se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos (Abelardo. Isagoge. Apud História do pensamento, v.1, p. 161).
Esse problema filosófico gerou muitas disputas. Era a grande discussão sobre a existência ou não das idéias gerais, isto é, os chamados universais de Aristóteles. Tal discussão ficou conhecida como a questão dos universais, isto é, da relação entre as coisas em seus conceitos. Envolvia não apenas problemas lingüísticos e gnosiológicos (relativos à questão do conhecimento), mas também teológicos.
Em relação a essa questão, surgiram duas posições antagônicas: o realismo e o nominalismo.
Os adeptos do realismo sustentavam a tese de que os universais existiam de fato, ou seja, as idéias universais existiriam por si mesmas. Assim, por exemplo, a bondade e a beleza, seriam modelos ou moldes a partir dos quais se criariam as coisas boas e as coisas belas. Os termos universais seriam entidades metafísicas, essências separadas das coisas individuais.
Essa posição foi defendida, por exemplo, pelo abade beneditino e arcebispo de Cantuária (Canterbury - cidade inglesa) Santo Anselmo (1035-1109), que acreditava que as idéias universais existiriam na mente divina.
O filósofo e bispo francês Guilherme de Champeaux (1070-1121) também era realista e acreditava que entre o universo das coisas e o universo dos nomes havia uma analogia tal que quanto mais "universal" fosse o termo gramatical, maior seria o seu grau de participação na perfeição original da idéia. Assim, por exemplo, o substantivo brancura teria uma perfeição maior do que o adjetivo branco, que se refere a um ente singular. Na mesma linha de raciocínio de Platão, o universal brancura seria mais perfeito do que qualquer coisa branca existente.
Já os defensores do nominalismo sustentavam a tese de que os termos universais, tais como beleza, bondade  etc, não existiriam em si mesmos, pois seriam apenas palavras sem uma existência real. Para os nominalistas, o que existe são apenas os seres singulares, e o universal não passa, portanto, de um nome, uma convenção.
Essa era a posição do filósofo francês Roscelin de Campiène (1050-1120), autor segundo o qual só existiria a individualidade. Logo, anulam-se os termos universais. Roscelin também negava que Deus pudesse ser uno e trino ao mesmo tempo, porque, para ele, cada pessoa da trindade seria uma individualidade separada.
Entre essas duas posições contrárias surgiu uma terceira, o realismo moderado, sustentado por Pedro Abelardo (1079-1142. Para ele, só existiriam as realidades singulares, mas seria possível buscar semelhanças entre os seres individuais, através da abstração, de tal maneira a gerar os conceitos universais. Tais conceitos não seriam, de acordo com Abelardo, nem entidades metafísicas (posição do realismo) nem palavras vazias (posição do nominalismo), e sim discursos mentais, categorias lógico-lingüísticas que fazem a mediação, a ligação entre o mundo do pensamento e o mundo do ser.
A importância da questão dos universais está não só no avanço que essa discussão possibilitou em relação à busca do conhecimento da realidade, mas também porque, através dela, se alcançou um alto nível de desenvolvimento lógico-lingüístico. Isso propiciou o fortalecimento de uma razão autônoma em relação à teologia, por volta do século XII.

2.2 A GRANDE SÍNTESE DE SANTO TOMÁS DE AQUINO E A CRISTALIZAÇÃO DE ARISTÓTELES

“Se é correto que a verdade e da fé cristã ultrapassa as capacidades da razão humana, nem por isso os princípios inatos naturalmente à razão podem estar em contradição com esta verdade sobrenatural” (Tomás de Aquino).
Tomás de Aquino (1226-1274) nasceu em Nápoles, sul da Itália, e faleceu no convento Fossanueva, próximo de sua cidade natal, aos 49 anos de idade. É considerado um dos maiores filósofos da escolástica medieval.
A filosofia de Tomás de Aquino (o tomismo) parece que nasceu com objetivos claros: não contrariar a fé. De fato, sua finalidade era organizar um conjunto de argumentos para demonstrar e defender as revelações do cristianismo.
Assim, Tomás de Aquino reviveu em grande parte o pensamento aristotélico com em busca de argumentos o que explicassem os principais aspectos da fé cristã. Enfim, fez da filosofia de Aristóteles um instrumento a serviço da religião católica, ao mesmo tempo em que transformou essa filosofia. Numa síntese original. O

2.2.1 Princípios básicos

A retomando as idéia as de Aristóteles sobre o ser e o saber, Tomás de Aquino enfatizou a importância da realidade sensorial. Em relação ao processo de conhecimento dessa realidade, ressaltou uma série de princípios considerados básicos, dentre os quais se destacam:
• princípio da não contradição ¾ o ser é ou não é. Não existe nada que possa ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista;
• Princípio da substância de medo ¾ na existência dos seres podemos distinguir a substância (a essência  propriamente dita, de uma coisa, sem a qual ela não seria aquilo que é) do acidente (a qualidade não-essencial, acessória do ser).
• princípio da causa eficiente ¾ todos os seres que captamos pelos sentidos são seres contingentes, isto é, não possuem, em si próprios, a causa eficiente de suas existências. Portanto, para existir, o ser contingente depende de outro ser que representa a sua causa eficiente, chamado de ser necessário;
• princípio da finalidade ¾ todo ser contingente existe em função de uma finalidade, de um objetivo, de uma "razão de ser". Enfim, todo ser contingente possui uma causa final;
• princípio do ato e da potência ¾ todo ser contingente possui duas dimensões: o ato e a potência. O ato representa a existência atual do ser, aquilo que está realizado e determinado. A potência representa a capacidade real do ser o jogo, aquilo que não se realizou mas pode realizar-se. É a passagem da potência para o ato que explica toda e qualquer mudança.



2.2.2 Distinção entre ser e essência

Apesar de esses princípios terem vindo do pensamento aristotélico, não se pode dizer que Tomás de Aquino tenha apenas adaptado a filosofia de Aristóteles e ao cristianismo. O que o filósofo escolástico empreendeu foi uma sistematização da doutrina cristã e se apóia em parte na filosofia aristotélica, mas que contam muitos elementos estranhos ao aristotelismo: o conceito de criação do mundo, a noção de um deus único, a idéia de que o Vir-a-ser (a passagem da potencia ao ato) não é auto-determinado, mas procede de Deus.
Mais que isso, Tomás de Aquino introduziu uma distinção entre o ser e a essência, dividindo a metafísica em duas partes: a do ser em geral e a do ser pleno, que é Deus. De acordo com essa distinção, o único ser realmente pleno no qual o ser e a essência se identificam, é Deus. Para o filósofo, Deus é ato puro. Não há o que se realizar ou se atualizar em Deus, pois ele é completo. Tomás de Aquino dirá que Deus é Ser, e o mundo tem ser. Ou seja, Deus é o ser que existe como fundamento da realidade das outras essências que, uma vez existentes, participam de seu Ser.
Isso equivale a dizer que, nas outras criaturas, o ser é diferente da essência, pois as criaturas que são seres não-necessários. É Deus que permite às essências realizarem-se entes, em seres existentes.

2.2.3 As provas da existência de Deus

O outro aspecto importante da filosofia tomista está nas provas da existência de Deus. Em um de seus mais famosos livros, a suma teológica, Tomás de Aquino propõe cinco provas da existência de Deus.
1.                           O primeiro motor: tudo aquilo que se move é movido por outro ser. Por sua vez, este outro ser, para que se mova, necessita também que seja movido por outro ser. E assim sucessivamente. Se não houvesse um primeiro ser movimente, cairíamos num processo indefinido. Logo, conclui Tomás de Aquino, é necessário chegar a um primeiro ser movente que não seja movido por nenhum outro. Este ser é Deus.

2.                           A causa eficiente: todas as coisas existentes no mundo não possuem em si próprias a causa eficiente de suas existências. Devem ser consideradas efeitos de alguma causa. Tomás de Aquino afirma ser impossível remontar indefinidamente à procura das causas eficientes. Logo, é necessário admitir a existência de uma primeira causa eficiente responsável pela sucessão de efeitos. Essa causa primeira é Deus.

3.                           Ser necessário e ser contingente: este argumento é uma variante do segundo. Afirma que todo ser contingente, do mesmo modo que existe, pode deixar de existir. Ora, se todas as coisas que existem podem deixar de ser, então, alguma vez, nada existiu. Mas se assim fosse, também agora nada existiria, pois aquilo que não existe somente começa a existir em função de algo que já existia. É preciso admitir, então, que existe um ser que sempre existiu, um ser absolutamente necessário, que não tenha fora de si a causa da sua existência, mas, ao contrário, que seja a causa da necessidade de todos os seres contingentes. Esse ser necessário é Deus.

4.                           Os graus de perfeição: em relação à qualidade que todas as coisas existentes, pode-se afirmar a existência de graus diversos de perfeição. Assim, afirmamos que tal coisa é melhor que outra, o mais bela, ou mais poderosa, ou mais verdadeira etc. Ora, se uma coisa possuem "mais" ou "menos" determinada qualidade positiva, isso supõe que deve existir um ser com o máximo dessa qualidade, no nível da perfeição. Devemos admitir, então, que existe um ser com máximo de bondade, de beleza, de poder, de verdade, sendo, portanto, um ser máximo e pleno. Esse ser é Deus.

5.                           A finalidade dos cerca: todas as coisas brutas, que não possuem inteligência própria, existem na natureza cumprindo uma função, um objetivo, uma finalidade, semelhante à flecha dirigida pelo arqueiro. Devemos admitir, então, que existe algum ser inteligente que dirige todas as coisas da natureza para que cumpram seu objetivo. Esse ser é Deus.

2.2.4 O mérito de Tomás de Aquino

Proclamado pela Igreja Católica como o Doutor Angélico e o Doutor por Excelência, Tomás de Aquino é reverenciado nos meios católicos pelos filósofos e professores de filosofia. é o caso do filósofo católico Jacques Maritain (1882-1973), que assim enaltece a contribuição de Tomás de Aquino:
Não só transportou para o domínio do pensamento cristão a filosofia de Aristóteles e na sua integridade, para fazer dela o instrumento de uma síntese teológica admirável como também e ao mesmo tempo super elevou e, por assim dizer, transfigurou essa filosofia. Purificou-a de todo vestígio de erro (...) sistematizou-a poderosa e harmoniosamente, aprofundando-lhe os princípios, destacando as conclusões, alardeando os horizontes, e se nada cortou, muito acrescentou, enriquecendo-a com o imenso tesouro da tradição latina e cristã (MARITAIN, Jacques. Introdução geral à filosofia, p.65).
Já o filósofo Bertrand Russell (1872-1970), questiona os méritos de Tomás de Aquino, considerando-o insuficientes para justificar sua imensa reputação. Diz o filósofo:
Existe pouco do verdadeiro espírito filosófico em Aquino (...). Não está empenhado numa pesquisa cujo resultado não possa ser conhecido de antemão. Antes de começar a filosofar, ele já conhece a verdade; está declarada na fé católica. Se, aparentemente, consegue encontrar argumentos racionais para algumas partes da fé, tanto melhor; se não, basta-lhe voltar de novo à revelação. A descoberta de argumentos para uma conclusão dada de antemão não é a filosofia, mas uma alegação especial. Não posso, portanto, a admitir que mereça ser colocado no mesmo nível que os melhores filósofos da Grécia ou dos tempos modernos (RUSSELL, Bertrand, história da filosofia ocidental, v.2, p.174).
Em que pese essa discordância de opiniões sobre os méritos de Tomás de Aquino, é praticamente unânime que o reconhecimento de que sua obra filosófica representou o apogeu do pensamento medieval católico. Posteriormente a esse período, o tomismo seria progressivamente questionado pelos movimentos filosóficos que se desenvolveriam na renascença e na idade moderna.

2.2.5 A escolástica pós-tomista

Os artigos de fé não são princípios de demonstração nem conclusões, não sendo nem mesmo prováveis, já que parecem falsos para todos, para a maioria ou para os sábios, entendendo por sábios aqueles que se entregam à razão natural, já que só de tal modo se entende o sábio na ciência e na filosofia (Guilherme de Ockham).
Grandes acontecimentos históricos marcaram a Europa nos séculos XIII e XIV. Entre eles, estão: a Guerra dos Cem Anos, entre a França e a Inglaterra; a epidemia da peste bubônica, que matou cerca de três quartos da população européia; o cisma definitivo entre as igrejas do ocidente e do oriente, que, entre outros fatores, diminuiu a influência da igreja católica romana sobre o poder temporal (o Estado) e sobre a população; a criação de novas universidades, que iniciam o desenvolvimento de questões relativas às ciências naturais e a autonomia da filosofia em relação à teologia. Esses são alguns dos fatores que levarão ao questionamento do pensamento escolástico bem como ao fim da Idade Média.
Entre os filósofos significativos desse período, destacam-se:
• São Boaventura (1240-1284): iniciou uma reação contra a filosofia tomista e buscou recuperar a tradição platônica a agostiniana. Mais tarde essa reação seria desenvolvida pelos filósofos e teólogos franciscanos, sobretudo na universidade de Oxford, Inglaterra.
• Roberto Grosseteste (1168-1243) e Roger Bacon (1214-1292): iniciaram uma investigação experimental no campo das ciências naturais que abriu caminho para a ciência moderna.
• Guilherme de Ockham (1280-1349): proclamou uma distinção absoluta entre fé e razão. Para ele, a filosofia não seria serva da teologia, e a teologia não poderia se quer ser considerada ciência, pois seria tão somente um corpo de proposições e mantidas não pela coerência racional, mas pela força da fé. A pensador empirista e nominalista, combateu a metafísica tradicional e iniciou o método da pesquisa científica moderna. Seu pensamento destacou-se porque apreendeu as transformações de seu tempo: a ruptura e entre a igreja e os nascentes Estados nacionais; a perda da concepção unitária da sociedade humana, que passou a se dividir cada vez mais entre o poder temporal e o poder espiritual; a ruptura entre fé e razão, ocasionada pelo nascente desenvolvimento da razão autônoma, que buscou através da investigação empírica o conhecimento dos fenômenos naturais.




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