Seria o “bolsonarismo” um movimento fascista? O que
significa ser um movimento fascista? E, quais as implicações que este tipo de
movimento pode trazer para a sociedade? Para tentar responder estas e outras
perguntas decidi elaborar um conjunto de artigos, cada um focando em uma
característica específica do que podemos chamar de “bolsonarismo” e sua
possível relação com o movimento fascista. Neste primeiro artigo analisarei o
“bolsonarismo” a partir do viés do discurso ideológico.
Antes de mais nada é preciso ressaltar que existe um
debate nas ciências políticas sobre a possibilidade ou não da aplicação do
conceito “regime fascista” na contemporaneidade. Para alguns intelectuais, como
Atilio Boron, não se pode caracterizar o governo de Bolsonaro de fascista, isso
seria um erro anacrônico, uma má utilização do conceito tradicional de
fascismo. Neste contexto, o fascismo deve ser compreendido como uma forma
excepcional do Estado capitalista, com características únicas e irrepetíveis,
que encontraram sua condição de possibilidade entre a Primeira e Segunda Guerra
Mundiais, em resposta à crise que enfrentava a democracia burguesa. Portanto,
segundo Boron, as condições que tornaram possível o surgimento do fascismo são
historicamente datadas e, por isso, não podem ser reproduzidas.
Por outro lado, segundo Armando Boito, apoiado na
teoria de Poulantzas, não seria correto caracterizar o fascismo a partir da
fração de classe que deteve a hegemonia política no fascismo original (a grande
burguesia monopolista italiana e alemã), assim como não é correto
caracterizá-lo fazendo referência genéricas ao nacionalismo, ao militarismo e
às práticas imperialistas características dos Estado fascistas originais.
Assim, uma ditadura fascista num país imperialista não terá o mesmo bloco no
poder que uma similar sua implantada num país cuja economia e cujos Estados
são, ambos, dependentes. Em outras palavras, haveria a possibilidade de um
movimento fascista e uma possível ditadura submissos ao capital internacional e
não a burguesia nacional imperialista, como ocorrida na Alemanha e na Itália.
Neste artigo não entrarei no mérito da questão se o
governo de Bolsonaro é, ou poderia vir a ser fascista. Limitarei a análise
sobre a relação entre movimento fascista e o “bolsonarismo”, que não é o mesmo que
o “governo de Jair Bolsonaro”, assim como “movimento fascista”, não é o mesmo
que “regime fascista”, que compreende uma lógica de funcionamento do Estado,
para além da defesa de um certo enquadramento interpretativo sobre a sociedade,
típica dos movimentos. O Bolsonarismo diz respeito ao conjunto de ideias e
perspectivas defendidas por Jair Bolsonaro, os membros do seu clã e seus
apoiadores, que independem do fato de Bolsonaro ter vencido o pleito de 2018.
São ideias que possuem um viés conservador, focado na defesa da tradição e dos
bons costumes, que, portanto, entendem que a diversidade de estilos de vida
estimula liberdades que desafiam o dogmatismo, a religião e à convenção,
podendo, por isso, causar a derrocada da própria sociedade brasileira.
Dentre as características de um movimento fascista, seguindo
a linha de Humberto Ecco no livro “O Fascismo Eterno” e Paxton no livro
“Anatomia do fascismo”, encontramos os seguintes pontos principais: culto da
tradição, recusa do debate e da crítica, medo da diferença, elitismo,
sentimento de complô, culto da violência e da morte, necessidade de um líder
racional e direito de um povo superior de dominar o inferior. A esses pontos
complemento com os seguintes: discurso superficialmente crítico, defesa de uma
ideologia frente à realidade e atuação das massas. Resta analisar em que medida tais
características cabem para explicar o bolsonarismo.
O primeiro ponto a que vou me dedicar diz respeito a
relação entre ideologia e bolsonarismo. Para tanto, mobilizo o conceito de ideologia
segundo a intepretação de Hannah Arendt, no livro “Origens do Totalitarismo”,
como sendo o modo de funcionamento de uma ideia que se organiza numa lógica
discursiva, que tem por pretensão ser projetiva, ou seja, ultrapassar as
barreiras do aqui e agora, necessária para compor o domínio totalitário.
O que isso significa? Que a ideologia tem uma
pretensão totalizante, ou seja, pretende explicar o presente, o passado e o
futuro, sem precisar ter lastro com a realidade, mas apenas uma dinâmica
interna que seja lógica, que pareça fazer sentido. Por isso, para Arendt o
raciocínio lógico é o oposto do pensamento, pois é apenas uma sequência de
inferências, de deduções, desvinculada da análise crítica. Segundo a autora “As
ideologias pressupõem sempre que uma ideia é suficiente para explicar tudo no
desenvolvimento da premissa e que nenhuma experiência ensina coisa alguma
porque tudo está compreendido neste coerente processo de dedução lógica”
(Origens do totalitarismo, p. 522).
A ideologia é, portanto, caracterizada como uma
emancipação da experiência e da realidade, a partir da ideia de existência de
uma “realidade mais verdadeira” que não poderia ser compreendida por meio da experiência,
sendo, portanto, necessário desenvolver nossas capacidades para além da
experiência, que nos permita alcançar a verdade. Aqui entra o papel da
doutrinação ideológica por meio da educação ou por meio da propaganda, que
pretende, de um lado, direcionar a forma do discurso, de modo que impossibilite
o emergir do novo, que possa comprometer a tradição, e de outro farejar
intenções secretas dentro dos atos políticos públicos, como a emergência das
conspirações e dos complôs, essencial para pautar os discursos, ou seja, direcionar
a atenção, de modo que certos temas ganham destaque em detrimentos daqueles que
se quer omitir. Processo que, segundo Arendt, faz parte da emergência do
domínio totalitário, como no contexto fascista.
Neste contexto, podemos pensar sobre um dos grandes
representantes do movimento bolsonarista, o guru Olavo de Carvalho e seu
“marxismo cultural”, teoria amplamente reverberada entre os bolsonaristas, como
o ministro da educação Abraham Weitraub. Podemos entender o “marxismo cultural”
como um plano da esquerda de conquista do poder por meio da cultura e da
educação, pautado em uma espécie de ataque aos valores tradicionais e
manipulação da mente da população. Tal
teoria, entretanto, não encontra aporte teórico nas obras de Marx e Engels, nem
nas obras de Gramsci, frequentemente citados como suportes teóricos do
“marxismo cultural”.
A teoria de Marx, sendo um pensamento filosófico,
aborda diversos aspectos da vida humana, como economia, política, organização
social, ideologias e valores culturais. Ao se utilizar o conceito de “marxismo
cultural”, não se pretende com isso falar sobre a concepção cultural do ser
humano a partir da teoria marxiana ou marxista, mas sim de uma suposta
conspiração para a tomada do poder a partir do controle das mentes. Deste modo,
promove-se a teoria da conspiração que se diz combater, o que não contribui nem
para o conhecimento nem para o debate crítico.
Diversos outros pontos podem ser citados, como os
ataques de Bolsonaro à ciência, desacreditando os dados de pesquisas, as
afirmações de que não existe fome no Brasil, que o incêndio na Amazônia tem
como causa principal as ONGs. Assim como as diversas manifestações polêmicas e
infundadas da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares
Alves, integrante do bolsonarismo, como a afirmação de que o movimento LGBT está
implantando uma “ditadura gay” no Brasil, que persegue aqueles que não a
aceitam. Ou as declarações do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo,
discípulo de Olavo de Carvalho, sobre a mudança climática ser um dogma
científico influenciado pela cultura marxista. Ou a ideia de que o nazismo
seria um movimento de esquerda ligado ao comunismo, defendida pelo youtuber bolsonarista
Nando Moura, ou ainda os ataques à Paulo Freire e à chamada ideologia de
gênero, ideia genérica e infundada, apresentadas por Bernardo Kuster, outro
youtuber bolsonarista.
São incontáveis os exemplos sobre a defesa de ideias
emancipadas da realidade e da experiência, como uma versão própria do mundo e
dos fatos, utilizado para corroborar o próprio pensamento e ideologia, no
sentido colocado por Hannah Arendt. E, o processo se torna mais assustador
quando se pensa que os difusores de tal pensamento não estão sozinhos, Nando
Moura possui aproximadamente dois milhões de inscritos, Kuster aparece com 550
mil e Olavo de Carvalho com 500 mil inscritos. E estes são apenas três
exemplos. Será esta a nova forma de mobilização das massas, entendido no
contexto de um movimento fascista? Parece que sim. Mas este será o tema para um
próximo artigo.
Bilbiografia
AREND, H. As Origens do Totalitarismo: imperialismo, a
expansão do poder. Rio de Janeiro: Ed. Documentário, 1976.
BORON, A. Caracterizar o governo de Jair Bolsonaro
como “fascista” é um erro grave”. Revista Brasil de Fato, em 02 de
Janeiro de 2019.
BOITO, A. O fascismo no Brasil. Boletim LIERI,
n.01, Maio de 2019.
PAXTON, Robert O. A anatomia do fascismo. São Paulo:
Paz e Terra, 2007
ECO, H. O Fascismo
Eterno, in: Cinco Escritos Morais, Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio
de Janeiro, 2002
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