Pular para o conteúdo principal

PODER E SABER: SOCIEDADE DISCIPLINAR EM MICHEL FOUCAULT

11.    Introdução

Na década de 1970, a partir da obra Vigiar e Punir, o filósofo francês Michel Foucault elaborou sua análise sobre a sociedade disciplinar, ressaltando as questões que envolvem a vigilância e o uso do poder para fins de controle dos indivíduos.
A vigilância sobre o comportamento dos indivíduos e das populações é considerada por Foucault (1996) como uma questão central e que merece estudo de suas manifestações a partir da Idade Moderna, que se inicia no final do século XVIII.
A explosão demográfica, atrelada ao crescimento acelerado do aparelho de produção, suscitaram novos desafios e problemas, os quais as disciplinas foram chamadas a equacionar. Deste modo, como afirma José Silvio Benelli no livro A Lógica da Internação:

“A decolagem econômica do Ocidente começou com processos de acumulação do capital. Já os métodos para gerir a acumulação das pessoas produziram uma decolagem política em direção a uma tecnologia minuciosa e calculada da sujeição”. (BENELLI, p. 65)

De fato, o regime disciplinar já existia anteriormente ao século XVIII, nos grandes mosteiros da Idade Média e nos conventos. No entanto, o que há de novo é o fato dele deixar de existir em estado isolado e se constituir como técnica privilegiada de gestão dos homens.
O presente trabalho procura acompanhar, de modo preliminar, a análise de Foucault sobre as configurações assumidas pelo poder a partir do século XVIII, desenvolvidas nos livros Microfísica do Poder e Vigiar e Punir. Tendo por objetivo compreender o processo pelo qual a vigilância hierárquica, assim como a sanção normalizadora e o exame, passam a ser fundamentais para o exercício do poder moderno. Formando a tríade basilar do exercício de um poder que busca produzir saber a respeito dos vigiados e adestrar os seus comportamentos.
  
2    2. A Sociedade disciplinar
A modernidade trouxe consigo uma restruturação das bases econômicas e políticas das sociedades europeias, fundando, o que Michel Foucault denominou, de  uma nova “economia”[1] de poder que, vinculado aos sistemas disciplinares, cria saberes a partir da vigilância e da disciplina.
A fim de analisar o novo regime de poder que se estabelece, Foucault se recusa a remetê-los a um sujeito constituinte, vez que o sujeito é constituído a partir da relação de poder, portanto não deve ser abordado como substrato da análise. Por isso, o filósofo francês utiliza como estratégia abordar a constituição destes termos no interior da trama histórica, método que ele denominou de genealógico.

“(…) chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica, é isso que eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objetos, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história”. (FOUCAULT, 1979, P.7)

Segundo Foucault, uma análise genealógica preciso se desvencilhar de alguns conceitos sedimentados nas teorias da época, a saber, os conceitos de ideologia e de repressão. O conceito de ideologia se constrói em oposição virtual a algo que seria a verdade, pressupõe a existência desta verdade, entretanto, para analisar as novas configurações assumidas pelo poder, não importa identificar o grau de verdade de um discurso, mas sim como se produzem efeitos de verdade no interior destes discursos, que não são em si mesmos nem verdadeiro nem falsos. Caminho este que a análise ideológica não fornece.
A repressão, por sua vez, oferece apenas uma concepção jurídica dos efeitos de poder, tendo por fundamento a força da proibição. No entanto, o poder não é apenas repressivo, ele penetra em toda a trama social, “produz coisas, induz ao prazer, forma saberes, produz discursos. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social, muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (ibidem, p. 08), afinal, completa Foucault, “Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido?” (ibidem, p.08).
Em suas pesquisas sobre o poder, Foucault almeja diferenciar as redes nas quais o poder se insere, a fim de reconstituir os fios que os ligam, por isso recusa as análises que se referem ao campo simbólico ou das estruturas significantes, isto é, da língua e dos signos. Foucault busca analisar as relações de poder e não as relações de sentido, já que “a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam e, a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem” (ibidem, p.14).
Neste contexto, o poder não deve ser entendido como algo que se possui, um objeto que pode pertencer a alguém ou um lugar a ser ocupado. O poder é uma estratégia para alcançar um objetivo, se manifesta através de relações entre pessoas, que são sempre desiguais e móveis. Como uma rede, o poder disciplinar “[…] está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar”. (FOUCAULT, 1999, p. 148).
Neste contexto, a vigilância passa a ser fundamental para o exercício do poder, vez que permite a produção de conhecimento sobre aqueles que são vigiados. Através da vigilância, poder e saber são coadunados de forma a propiciar um controle ainda mais contundente, perene e profundo. Propiciando assim, o crescimento do próprio poder e o rendimento dos aparelhos no interior dos quais ele se exerce (pedagógicos, militares, industriais, médicos).

O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do poder disciplinar […], cujos processos de submissão das forças e dos corpos, cuja “anatomia política” […] podem ser postos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições muito diversas. (ibidem, p.182)

Para viabilizar a vigilância, o poder disciplinar opera, em primeiro lugar, na distribuição dos indivíduos no espaço, isto é, trabalha, fundamentalmente, de acordo com o princípio da clausura: construindo cercas e muros que visam à circunscrição de um local fechado e heterogêneo a todos os outros.
Confinados, os indivíduos podem ser submetidos a uma vigilância constante. E,   cabe ao olhar vigilante observar e julgar o comportamento de todos e punir os pequenos desvios a fim de evitar danos futuros. [2]
Foucault (1999) cita o Panóptico, modelo arquitetural sugerido por Jeremy Bentham, no final do século XVIII, como o ideal para as prisões. Trata-se de uma torre central que permite ver todas as celas dispostas ao seu redor. A presença de alguém na torre não é possível de ser percebida pelos indivíduos que estão nas celas. É impossível saber se há alguém na torre vigiando ou não, isto representa a internalização da vigilância. A vigilância torna-se, portanto, contínua e ampla, a tal ponto que o indivíduo passa a se vigiar, não existindo mais a necessidade de outra pessoa em tal tarefa. Portanto, quanto mais invisível o olhar vigilante se torna, mais definitiva e permanente passa a ser a sua capacidade de vigiar.

[…] rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede ‘sustenta’ o conjunto e o perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os outros: fiscais perpetuamente fiscalizados. (ibidem, p. 148).

O poder disciplinar opera também por meio de “vigilâncias múltiplas e entrecruzadas” (ibidem p. 143), vez que para se formar um saber sobre o outro é necessário estabelecer um método de registro do comportamento, que permita a sua análise e o uso efetivo das informações registradas. Por isso, são muitas as formas e os momentos de vigilância e são inúmeros os registros feitos a respeito dos comportamentos. Surgem assim os prontuários médicos, os registros de internamento, as tabelas e relatórios dos processos judiciais, do controle da produção e até mesmo da progressão escolar.
Dentro deste contexto, o exame – tanto médico, quanto educacional – oferece informações para que se proceda comparações entre os atos e comportamentos dos sujeitos, suas diferenciações em relação ao conjunto e a posterior correção dos desviantes, permitindo o gerenciamento da ação do indivíduo.
Os métodos disciplinares, portanto, operam a partir do controle minucioso das operações do corpo, sujeitando suas forças e tornando-os dóceis, úteis e eficazes para os objetivos socialmente visados. Portanto, como já afirmado anteriormente, o poder disciplinar não é meramente punitivo, objetiva a produção de indivíduos disciplinados e, até certo ponto, previsíveis.
 O exercício do poder articula o domínio sobre o corpo sem o uso da violência[3],  o objetivo não é ferir nem marcar aquele a quem o poder se aplica, e sim adestrar comportamentos. Portanto, o foco do poder disciplinar não é a violência repressiva, mas sim a prevenção. [4]

A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício […]. O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvidas ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame. (Foucault, 1999, p.143)

Nesta perspectiva, Foucault pensa o poder fora do Estado, analisando-o como tática e estratégia que se exerce na trama social: no hospital, na escola, na oficina, nas fábricas, nos quartéis, nas prisões e na polícia. E, para que tal poder possa se exercer plenamente, as instituições foram ocupadas pelas disciplinas e transformadas em aparelhos nos quais qualquer mecanismo de objetivação produz sujeição, onde qualquer crescimento de poder gera conhecimentos possíveis. [5]

Bibliografia

BENELLI, SJ. Foucault e a prisão como modelo institucional da sociedade disciplinar. In: A lógica da internação: instituições totais e disciplinares (des)educativas. São Paulo: Editora UNESP, 2014.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

___________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.




[1]                     Economia de poder” é um termo que Foucault cita no livro Microfísica do Poder sem grande desenvolvimento. É no livro Vigiar e Punir que o filósofo procura mostrar como, a partir dos séculos XVII e XVIII foi instaurado uma nova “economia de poder”, isto é, uma nova estrutura e procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder.
[2]              A suntuosidade dos palácios do Absolutismo, feitos para serem admirados, dá lugar a uma arquitetura que não é construída para ser vista, antes é projetada para tornar mais fácil ver aqueles que se encontram no seu interior.
[3]                     Ao citar a violência, estou me referindo à violência física, o que não abrange a violência simbólica, trabalhada por diversos autores, entre ele Pierre Bourdieu (1930-2002).
[4]                     Existe a possibilidade de quebrar a teia do poder-saber? Para se opor a criação de saberes institucionalizados é preciso dar validade a discursos que o sistema de poder busca invalidar. Daí emerge o papel do intelectual, não como o detentor da verdade, mas como agente capaz de lutar contra as formas de poder na ordem do saber, das consciências e dos discursos, possibilitando um novo regime de verdades.
[5]                     Na sociedade do século XXI, mudanças socioculturais e econômicas, promovidas pelo avanço da tecnologia e da transformação, alteram as relações e as aplicações da vigilância e da disciplina no controle social e na construção de subjetividades. A despeito das transformações ocorridas no século XXI, Benelli (2014) afirma que as antigas instituições disciplinares ainda não desapareceram da sociedade contemporânea, sendo mantidas como estratégia em locais sem acesso à tecnologia de ponta.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Existe um temperamento próprio de cada sexo? Resenha Sexo e Temperamento - Mead

Na introdução do livro “Sexo e Temperamento”, Margaret Mead (1901-1978) discorre sobre a construção dos valores sociais, a partir das características valorizadas e desvalorizadas nas sociedades, mostrando como estas não são fixas, variando no tempo e no espaço. A autora procura mostrar que valores sociais conduzem os indivíduos a certos tipos de temperamento e à aceitação de padrões de comportamento. Para fortalecer seu argumento, Mead mostra como situações aparentemente desvinculadas podem, quando enraizados na cultura, assumir extraordinária força, como o caso dos Mundugumor, que acreditavam que uma criança que nasce com o cordão enrolado no pescoço tem maiores aptidões artísticas. Este caso, assim como outros, por serem muito diferentes da nossa cultura, vemos com distanciamento, considerando-os como frutos da imaginação. Entretanto, vemos com outros olhos quando se trata das várias diferenças entre homens e mulheres, que ainda persistem em nossa sociedade, as quais se procurou

GIDDENS: O ESTADO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

Pergunta para entender o lugar da força: Noção de Estado é válida para todas as sociedades? 1.       A existência de formas político-institucionais diversas 2. Feudalismo : a descentralização dos centros de poder . Funções do Estado desagregadas ao longo da cadeia hierárquica feudal . Soberania fragmentada . Direito consuetudinário e igualitário 3.       Estado absoluto: processo de concentração de diferentes poderes e centralização do poder. . Modernização jurídica: direito romano, lei passa a ter aplicação universal (exceto ao soberano) . Tributação regular e organização das finanças do Estado . Início da separação público x privado . “No Estado absolutista, o processo político deixou de ser primordialmente estruturado pela contínua e legítima tensão e colaboração entre dois centros independentes de autoridade, o governante e as cortes; agora desenvolve-se exclusivamente a partir do governante e em torno deste” (Poggi, livro: a evolução do estado moderno).

A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA

Apostila Parte 1: http://www.scribd.com/doc/71646281/Scan-Doc0040 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 3:  http://www.scribd.com/doc/73691190/Scan-Doc0042 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 2: COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia . 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. REALE, G; ANTISSERI, D. História da filosofia : patrística e escolástica. v.2. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2005. 1. O PENSAMENTO CRISTÃO: A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA "Quem não se ilumina com o esplendor de todas as coisas criadas, é cego. Quem não desperta com tantos clamores, é surdo. Quem, com todas essas coisas, não se põe a louvar a Deus, é mudo. Quem, a partir de indícios tão evidentes, não volta a mente para o primeiro princípio, é tolo" (São Boaventura). A queda do Império Romano foi causada por uma série de problemas internos que fragilizaram o Império e o colocaram à disposição de invasões de outros po