Pular para o conteúdo principal

Foucault - Microfísica do Poder

Foucault, Michel. Microfísica do poder; organização e tradução de Roberto Machado. 24ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979

Verdade e poder (p.1-14)
Esta parte trata de um diálogo entre Alexandre Fontana e Michel Foucault. AF começa perguntando o que levou Foucault a se interessar pelos tópicos: história da loucura na idade clássica e sobre a vigilância e delinquência. 
1)      MF responde que entre 50 e 55 o problema que se colocava era sobre o estatuto político da ciência e as funções ideológicas que elas podiam veicular. Cita o caso de Lyssenko, como um exemplo que envolve a relação entre poder e saber. Segundo MF é muito complicado perguntar para à Física teórica, por exemplo, quais são suas relações com as estruturas políticas e econômicas da sociedade. Por outro lado, tal pergunta feita à psiquiatria seria mais fácil de responder, pois o perfil epistemológico da psiquiatria é pouco definido. Além de estar vinculada a uma série de instituições, com exigências econômicas e políticas de regulamentação social, portanto é mais fácil perceber a relação entre psiquiatria e a estrutura social e política da sociedade. MF afirma que no livro Nascimento da Clínica pretendeu analisar este mesmo questionamento, mas agora em relação à Medicina. MF afirma também se ficou surpreso quando percebeu que tais questionamentos não despertavam o interesse dos envolvidos e, elenca três motivoa para isso:
a)      PROBLEMA DOS INTELECTUAIS MARXISTAS DA FRANÇA: Foucault cita a sigla PCF. Estes intelectuais tinham por intuito o reconhecimento por parte da instituição universitária, por isso se recusavam a tratar de questões que se distanciavam das aceitas no meio acadêmico;
b)      O ESTALINISMO PÓS- ESTALINISTA: não permitia a abordagem de novos caminhos “os marxistas pagavam sua fidelidade ao velho positivismo(...)” e se colocavam surdos diante das questões da psiquiatria pavloviana. (p. 02)
Apesar do silencia da esquerda intelectual francesa (apesar da tradição marxista e do PC), os questionamentos levantados por MF passaram a ganhar importância política no pós 68, com a abertura política. MF levanta a possibilidade de uma terceira razão:
c)      Será que não havia uma recusa por parte dos intelectuais do P.C.F. em encarar o problema do enquadrinhamento disciplinar da sociedade? Cita que entre os anos 55 e 60 poucos tinham conhecimento da amplitude real do Gulag, mas afirmam que muitos pressentiam que se tratava de um tema muito perigoso para se falar. Cita que é de conhecimento o fato da direção do partido lançar palavras de ordem para se impedir que se falasse disto ou daquilo.
MF começa então a falar sobre a CONTINUIDADE E A DESCONTINUIDADE DA CIÊNCIA: para ele a medicina, a biologia não seguem uma ordem contínua como normalmente se costumava pensar na época. As mudanças, mesma que lentas, que ocorreram na medicina, por exemplo, não foi mudanças a partir de novas descobertas, mas uma mudança de regime. Ou seja, romperam não apenas com as proposições verdadeiras, mas também com a maneira de falar e de ver o problema.
Segundo Foucault, seu objetivo não é aplaudir a descontinuidade, mas sim entender como temos em certos momentos e em certas ordens de saber, estas mudanças bruscas, estas transformações que não condizem com a ideia de continuidade. Afinal, não é uma mudança de conteúdo (refutação de erros antigos), nem tampouco uma alteração da forma (modificação do conjunto sistêmico) o que está em questão é o que rege o enunciado, o que diz respeito a construção de proposições aceitáveis cientificamente. O ponto não é saber qual o poder que rege do exterior sobre a ciência, mas quais os efeitos de poder que circulam entre os enunciados científicos.
MF afirma que não é correto defini-lo como um escritor da descontinuidade, por que afirma que, o ponto central é o “regime discursivo”, dos efeitos do poder próprio do jogo enunciativo. MF assume que este tipo de análise ainda aparece deficiente nos livros História da Loucura e As palavras e as coisas.

2)      AF coloca se não deveria se eleger como conceito importante na teoria de Foucault o conceito de ACONTECIMENTO, tema que gerou grandes impasses principalmente se tratando do estruturalismo (dicotomia entre a estrutura – aquilo que é pensável – e o acontecimento – o lugar do irracional, do impensável)
MF afirma que o estruturalismo tenha sido o esforço mais sistemático para eliminar não apenas da etnologia, mas de uma série de ciências, inclusive da história, o conceito de acontecimento. MF se coloca como anti-estruturalista. MF afirma que não se trata de fazer com o acontecimento o que se fez com a estrutura, ou seja, colocar tudo no plano do acontecimento, mas entender que existe todo “um escalonamento de tipos de acontecimentos diferentes, que não tem o mesmo alcance, a mesma amplitude, nem a mesma capacidade de produzir efeitos”. (p.5)
O que MF busca realizar é “distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendram, uns a partir dos outros”. (p. 5) Por isso MF recusa  das análises que se referem ao campo simbólico ou das estruturas significantes, ou seja, da língua e dos signos, e o recurso às análises que se fazem em termo de GENEALOGIA DAS RELAÇÕES DE FORÇA, DE DESENVOLVIMENTO ESTRATÉGICO E DE TÁTICAS. Busca analisar a relação de poder e não a relação de sentido. Afirma que a história “não tem sentido”, o que não significa que seja absurda ou incoerente, mas deve ser analisada segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas. Nesse sentido, “sem a dialética (como lógica de contradição), nem a semiótica (como estrutura da comunicação) poderiam dar conta do que é a inteligibilidade intrínseca dos confrontos” (p.5) Dialética: evita a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade, reduzindo-a ao esqueleto hegeliano, já a semiologia evita seu caráter violento, sangrento, reduzindo-a à forma platônica da linguagem e do diálogo.
AF: afirma que na época que Foucault escrevia as análises se pautavam no conceito de texto, isto é, pela semiologia, pelo estruturalismo. MF teria sido o primeiro a analisar o o discurso a partir do poder.
MF não se considera o primeiro a usar este conceito. Afirma que poderia ter tratado da questão do poder na História da loucura e no Nascimento da Clínica, mas que seja pelo momento histórico ou pela dificuldade de formular, não relacionar eficientemente o conceito de poder com os temas analisados. Na época, afirma MF, a direita se preocupava apenas com questões jurídicas, constitucionais e a esquerda com termos de aparelho de Estado, ninguém se preocupava especificamente do conceito de poder. Apenas denunciavam o poder no adversário: “o poder no socialismo soviético era chamado pelos seus adversários de totalitarismo; no capitalismo ocidental era denunciado pelos marxistas como dominação de classe, mas a mecânica do poder nunca era analisada” (p.6). Tema que só pode ser tratado após 68. Segundo MF “o internamento psiquiátrico, a normalização mental dos indivíduos, as instituições penais têm, sem dúvida, uma importância muito limitada se se procura somente sua significação econômica” (p.06)
AF: pergunta se um certo marxismo e uma certa fenomenologia não seriam empecilhos para este tipo de análise que Foucault propõem realizar sobre o poder. MF afirma que é possível, na medida em que pois a fenomenologia remete ao sujeito constituinte e o marxismo remetia ao econômico em última instância, à ideologia e ao jogo das superestruturas e das infraestruturas.
AF: dentro deste quadro metodológico, como você situaria a abordagem genealógica? MF afirma que objetiva analisar o problema de constituição no interior de uma trama histórica, ao invés de remete-lo a um sujeito constituinte, afirma que é preciso se livrar do próprio sujeito, ou seja, “chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica, é isso que eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objetos, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história”. (p.07)
AF: Afirma que a fenomenologia marxista, um certo marxismo, representaram um obstáculo. E que há dois conceitos que hoje continuam a ser um obstáculo: ideologia e repressão. MF Afirma que o CONCEITO DE IDEOLOGIA é dificilmente utilizável, por três razões:
a)      Ela está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade, MF afirma que o importante não é fazer a partilha entre o que num discurso se revela sobre a verdade e o que se revelaria sobre outra coisa, mas sim de ver como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si mesmos nem verdadeiros nem falsos;
b)      Segundo inconveniente: refere-se necessariamente a alguma coisa como o sujeito;
c)      A ideologia está em posição secundária com relação a alguma coisa que deve funcionar para ela como infraestrutura ou determinação econômica, material.
O CONCEITO DE REPRESSÃO: para MF é mais pérfida e mais difícil de se livrar, pois parece se adaptar a uma série de fenômenos que dizem respeito aos efeitos de poder. No entanto, quando se define os efeitos de poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder, identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamento seria a força da proibição, esta noção negativa é comumente aceita, no entanto pergunta MF “Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? ” (p. 08) O que faz um poder ser mantido e aceito é porque ele não é apenas uma força que diz não, mas também “produz coisas, induz ao prazer, forma saberes, produz discursos. Deve-se considera-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (p.08) – CONCEITO DE PODER.
MF afirma que no livro Vigiar e Punir, quis mostrar como a partir dos séculos XVII e XVIII, “as monarquias da Época Clássica não só desenvolveram grandes aparelhos de Estado – exército, polícia, administração local – mas instauraram uma nova “economia” do poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder”... “estas técnicas são muito mais eficazes e muito menos dispendiosas (menos caras economicamente, menos aleatórias em seus resultados, menos suscetíveis de escapatória ou de resistência) do que as técnicas então usadas” (p08)

AF: para encerrar pergunta como utilizar os estudos de Foucault nas lutas cotidianas. Qual é hoje o papel do intelectual?
MF: Durante muito tempo o intelectual dito de esquerda tomou a palavra e foi reconhecido enquanto dono da verdade, como representante do universal. O intelectual seria a figura clara e individual de uma universalidade (em sua forma consciente e elaborada) da qual o proletariado seria a forma obscura e coletiva (pouco consciente de si). Segundo MF, a muitos anos que não se pede aos intelectuais que desempenhem este papel, estabelecendo um novo modo entre teoria e prática. Os intelectuais se habituaram a trabalhar não no universal, mas em setores determinados (moradia, hospitais, relações familiares ou sexuais, etc.), com isso ganharam uma consciência muito mais concreta das lutas, encontram problemas que eram específicos, muitas vezes diferentes daqueles do proletariado e das massas, no entanto se aproximaram deles. MF ita duas razões para isso:
a)      Porque se tratava de lutas reais, matérias e cotidianas;
b)      Porque encontravam com frequência o mesmo adversário do proletariado, do campesinato ou das massas (as multinacionais, os parelhos jurídicos e policiais, a especulação imobiliária, etc.)
É o que eu chamaria de intelectual ‘específico’, em oposição ao intelectual ‘universal’”. (p.09)
Esta figura nova tem uma nova significação política: o intelectual deixa de ser por excelência o escritor, que se opunha a aqueles que eram apenas competências a serviço do Estado ou do Capital (engenheiros, professores) – que se assistiu principalmente durante os anos 60 - , assim se produz ligações transversais de saber para saber, de um ponto de politização para o outro. Deste modo, segundo MF, a chamada crise da universidade não deve ser interpretada como perda de força, mas como multiplicação e reforço de seus efeitos de poder “no meios de um conjunto multiforme de intelectuais em que praticamente todos são afetados por ela e a ela se referem” (p.09-10)
A figura do INTELECTUAL ESPECÍFICO se desenvolve a partir da segunda grande guerra. A articulação entre estes dois tipos de intelectuais foi realizado pelo físico atômico Oppenheimer (tinha uma relação direta e localizada com a instituição e o saber científico a que intervinha, ao mesmo Tempo que tratava de algo que dizia respeito a toda humanidade, a energia atômica). Esse cientista desenvolveu uma posição específica na ordem do saber e foi perseguido pelo poder político não em função de seu discurso geral, mas por causa do saber que detinha.
O INTELECTUAL “UNIVERSAL” tal como funcionou no século XIX e começo do Século XX derivou do homem da justiça, do homem da lei, “aquele que opõem a universidade da justiça e a equidade de uma lei ideal ao poder, ao despotismo, o abuso, à arrogância da riqueza” (p. 10).
As grandes lutas do século XVIII se fizeram em torno da lei, que pode e deve valer universalmente. O intelectual “universal” nasceu assim do jurista que reivindicava a universalidade da lei justa. MF usa intelectual no sentido político, ou seja, aquele que faz uso de seu saber, de sua relação com a verdade nas lutas políticas.
O INTELECTUAL ESPECÍFICO: deriva de uma figura muito distinta do “JURISTA NOTÁVEL”: o “CINTÍSTA-PERITO”. Esta figura começa a se construir desde o fim do século XIX com os pós-darwinianos: as relações tempestuosas entre o evolucionismo e os socialistas, os efeitos bastante ambíguos do evolucionismo (sobre a sociologia, a criminologia, a eugenia, a psiquiatria) mostram que em nome de uma verdade “local” se faz a intervenção do cientista nas lutas políticas que lhe são contemporâneas.
MF cita Zola como o tipo de intelectual “universal”, mas alimentou seu discurso com referência nosologia, evolucionista – MF faz uma crítica a este intelectual.
O intelectual “específico” nasceu na biologia e na física. Este tipo de intelectual se desenvolveu por causa da extensão das estruturas técnico científicas na ordem da economia e da estratégia. Não é mais a figura do “escritor genial” (que empunha sozinho os valores de todos contra o soberano) mas sim do “cientista absoluto” (estrategista da vida e da morte). Segundo MF “vivemos atualmente o desaparecimento do ‘grande escritor’”. (p.11). A aceleração deste movimento se deu a partir de 1920.
OBSTÁCULOS DO “INTELECTUAL ESPECÍFICO”: risco de se manipular por partidos políticos ou por aparelhos sindicais, risco de não conseguir desenvolver a luta por falta de estratégia global e de poios externos, risco de ser seguido apenas por grupos muito limitados.
De acordo com MF a função do intelectual específico não deve ser abandona, mas apenas reelaborada (esta atuação trouxe benefícios para a área da psiquiatria). Segundo ele, este o papel do intelectual específico deve se tornar cada vez mais importante, porque quer queira ou não deverá assumir responsabilidades políticas, enquanto físico, geneticista, etc.
MF coloca argumentos contra a refutação aos intelectuais específicos:
- Desqualifica-los em sua relação específica com um saber local, sob o pretexto de que se trata de um problema de especialistas que não interessa às massas: o que é falso, pois as massas têm consciência dos problemas e estão neles implicados;
- Serve ao interesse do Capital e do Estado: o que é verdade, mas mostra o lugar estratégico que ele ocupa;
- Ele veicula uma ideologia cientificista: o que nem sempre é verdade e tem uma importância secundária, pois o primordial sãos os efeitos específicos dos discursos verdadeiros.
O conceito de VERDADE: “ (...) a verdade não existe fora do poder ou sem o poder (...) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem regime de verdade” (p12), ou seja, os discursos que ela acolhe como verdade, os mecanismos que permitem separar os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona a obtenção da verdade, o estatuto daqueles que podem dizer o que funciona como verdade.
Segundo MF, a economia política da verdade tem cinco características historicamente importantes: p. 13
1-      É centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem;
2-      Está submetida a uma constante incitação política e econômica;
3-      É objeto de imensa difusão e consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação);
4-      É produzida e transmitida sob controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos e econômicos (universidade, exércitos, etc);
5-      É objeto de debate político e de confronto social.
O que se deve levar em consideração no intelectual não é o portador de valores universais, ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada a funções gerais do dispositivo de verdade em nossa sociedade.
O intelectual tem uma tripla especificidade:
a)      A especificidade de sua posição de classe (pequeno burguês, intelectual orgânico do proletariado);
b)      As especificidades de suas condições de vida e de trabalho, ligadas às suas condições de intelectuais (seus domínios de pesquisa, seu lugar no laboratório, as exigências políticas a que se submete);
c)      A especificidade da política de verdade na sociedade contemporânea. É então que sua posição pode adquiri uma posição geral, que seus embates têm efeitos não apenas no campo local ou setorial. Ele luta ao nível do regime de verdade, tão essencial para o funcionamento da nossa sociedade.
É preciso pensar os problemas dos intelectuais não em termos de “ciência/ideologia”, mas sim “verdade/poder”. Segundo MF “é então que a questão da profissionalização do intelectual, da divisão entre trabalho manual e intelectual, pode ser novamente colocada”. (13)

Conceito de verdade: “o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribuiu ao verdadeiro efeitos específicos de poder”. (p. 13)
- “Por verdade entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados”. (p.14)
- “a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. “Regime” de verdade”. P. 14
“Este regime não é simplesmente ideológico ou superestrutural, foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo. É ele que com algumas modificações funciona na maior parte dos países socialistas”. P.14
O problema político essencial: não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência, mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. Mudar o regime político, econômico, institucional de produção da verdade.



OS INTELCTUAIS E O PODER – CONVERSA DE MICHEL FOUCAULT COM GILLES DELEUZE
MF: fala sobre um maoísta.
GD: vivemos uma nova relação teoria e prática. Ás vezes se concebia a prática como uma aplicação da teoria ou ao contrário. Para GD as relações entre teorias e práticas são mais parciais e fragmentárias. Uma teoria é sempre local, relativa a um pequeno domínio e pode se aplicar a um outro domínio. Desde que uma teoria penetre em seu próprio domínio encontra obstáculos que torna necessária que seja revezada por outro tipo de discurso (o que permite, eventualmente, passar a um domínio diferente).
“a prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um revezamento de uma prática a outra”. (p. 70). Quando uma teoria se desenvolve ela encontra um muro e é preciso a prática para atravessar o muro. Exemplo a teoria de MF: começou analisando um meio de reclusão como o asilo psiquiátrico no século XX na sociedade capitalista. Depois sentiu a necessidade de que pessoas reclusas falassem por si próprios (a criação do G.I.P – Grupo de Informação Prisões), um revezamento, é errado dizer que houve uma passagem da prática para comprovar a teoria, pois se trata de algo totalmente diferente,
Para GD o intelectual deixou de ser “um sujeito, uma consciência representante ou representativa. Aqueles que agem e lutam deixaram de ser representados (...) Quem fala e age? Sempre uma multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que fala ou age. Nós somos todos pequenos grupos. Não existe mais representação, só existe ação, ação de teoria, ação de prática em relações de revezamento ou em rede”. (p70)

MF: Sobre a POLITIZAÇÃO DO INTELECTUAL. Tradicionalmente se fazia a partir de duas coisas:
a)      A sua posição de intelectual na sociedade burguesa, no sistema de produção capitalista, na ideologia que ele produz ou impõem;
b)      Seu próprio discurso enquanto revelava uma determinada verdade, descobria relações políticas onde normalmente elas não eram percebidas
Havia o tipo do intelectual “maldito” e o intelectual socialista. Estas duas formas de politização se confundiram depois de 1948, depois da Comuna de Paris: o intelectual era rejeitado, perseguido, o intelectual dizia a verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-las.
O que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber, elas sabem melhor do que eles e o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra e invalida este discurso e este saber. Poder que não se encontra apenas nas instâncias da censura, mas que penetra em toda a trama da sociedade (o micro e o macro poder – comentário meu). Os próprios intelectuais quando assumem o papel de agentes da consciência e do discurso fazem parte deste sistema de poder. O papel do intelectual não é dizer a verdade de todos é antes o de lutar contra as formas de poder na ordem do saber, da verdade, da consciência, do discurso.
Por isso, afirma Foucault a teoria não aplicará uma prática; ela é uma prática, local e regional, não totalizadora. A teoria não representa uma luta para a tomada de consciência “a muito tempo que a consciência como saber está adquirida pelas massas e que a consciência como sujeito está adquirida, ocupada pela burguesia). ” Segundo MF “uma ‘teoria’ é o sistema regional desta luta”. P. 71

GD: concorda com MF e completa “uma teoria é como uma caixa de ferramenta. Nada tem a ver com o significante...É preciso que sirva, é preciso que funcione” p. 71- E não para si mesma, se não há pessoas para utiliza-la, a começar pelo próprio teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras. GD diz que foi Proust (mesmo sendo um puro intelectual), que disse tão claramente: “tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhe servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos os seus instrumentos, que são necessariamente instrumentos de combate”. Segundo GD, a teoria não totaliza, a teoria se multiplica.
Quando a teoria penetra em certo ponto ela produz como consequência prática uma explosão. Por isso, GD considera a noção de reforma tão estúpida pois:
a)      Ou a reforma é elaborada pelas pessoas que têm como ocupação falar pelos outros, em nome dos outros, que se configura como uma reorganização do poder, que se acompanha de uma repressão constante;
b)      Ou é uma reforma reivindicada, aí deixa de ser uma reforma, é uma ação revolucionária, eu está decidida em colocar em questão a totalidade do poder e de sua hierarquia. “Isto é evidente nas prisões: a menor, a mais modesta reivindicação dos prisioneiros basta para esvaziar a pseudo- reforma Pleven”. P. 72 (...) “ Na verdade, este sistema em que vivemos nada pode suportar: daí sua fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo tempo que sua força global de repressão”.
GD coloca que um ponto fundamental posto por Foucault é a indignidade de falar pelos outros.
MF: Quando os prisioneiros começaram a falar viu-se que eles tinham uma teoria da prisão, este discurso contra o poder expresso pelos prisioneiros é que é fundamental para Foucault e não um discurso sobre a delinquência. O problema da delinquência é problema marginal, local (é um número pequeno da população que vai para as prisões). Este poder marginal atinge as pessoas, porque é no sistema penal que o poder como poder da maneira mais manifesta, pois é o poder de privar o indivíduo de diversos prazeres e necessidades.
MF afirma que o exercício do poder nas prisões chega a infantil, pregando formas de vingança que aprendemos quando crianças, pois as prisões é o único lugar em que o poder pode se manifestar em estado puro, nas dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral. “sua tirania brutal aparece então como dominação serena do Bem sobre o Mal, da ordem sobre a Desordem”.
GD: Afirma que não apenas os prisioneiros são tratados como crianças, mas as crianças como prisioneiros. As crianças sofrem uma infantilização que não é delas, assim as escolas e as fábricas se parecem um pouco com as prisões. Fala criticamente do panóptico de Jeremias Bentham.
MF: Afirma que atrás do ódio que o povo tem da justiça, dos tribunais e das prisões não se deve apenas ver a ideia de uma outra justiça, melhor e mais justa, mas antes o fato de que o poder se exerce em detrimento do povo. Nesse sentido, a luta anti-judiciária é uma luta contra o poder e não uma luta contra as injustiças e por um melhor funcionamento das instituições judiciárias. Segundo Foucault, a própria forma do tribunal pertence a uma ideologia da justiça que é a da burguesia.
GD: afirma que se considerar a situação atual, o poder possui forçosamente uma visão total ou global, ou seja, todas as forças atuais de repressão, que são múltiplas, se totalizam facilmente do ponto de vista do poder: a repressão racista contra os imigrantes, a repressão nas fábricas, a repressão no ensino. Cita Maio de 68. GD afirma que se refere a algo que MF citou a muito tempo, mas que não se achava que poderia ocorrer: o reforço de todas as estruturas de reclusão. Neste contexto, vários tipos de categorias profissionais vão ser convidados a exercer funções policiais cada vez mais precisas: professores, psiquiatras, educadores de todos os tipos. Para entender e atuar sobre o que está acontecendo, afirma GD, não se devemos analisar o poder a partir de formas centralistas e a partir de hierarquias, o que “devemos fazer é instaurar ligações laterais, todo um sistema de redes, de bases populares” p. 74. GD afirma que o objeto de estudo, a realidade dos fatos não passa pela política, entendida como partido político, como representação (competição e distribuição de poder). A realidade é o que está acontecendo efetivamente em uma fábrica, em uma escola, em uma prisão, neste sentido a ação comporta um conjunto de informações de natureza diferente daquelas presentes no jornais. 
MF: “ Esta dificuldade – nosso embaraço em encontrar as formas de lutas adequadas – não virá de que ainda ignoramos o que é poder? Segundo Foucault, foi preciso esperar até o século XIX para saber o que era a exploração. Talvez Marx e Freud não sejam suficientes para nos ajudar a entender o que seja o poder. A análise do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado não esgota o campo de exercício e de funcionamento do poder.
Segundo Foucault, existe um grande desconhecido: quem o exerce o poder e onde o exerce? Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. A noção de classe dirigente nem é muito clara nem muito elaborada, assim como o conceito de aparelho de Estado. Seria preciso entender até onde se exerce o poder, através de que revezamentos e até que instâncias. “Ninguém é propriamente seu titular e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção (...)não se sabe ao certo quem o detém, mas se sabe quem não o possui (...) cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder (um diretor de prisão, um juiz, um responsável sindical)p.76
MF cita os livros: Nietzsche e a filosofia / Antiédipo: Capitalismo e esquizofrenia.
Falar a respeito do poder é uma primeira forma de inversão de poder, é o primeiro passo para outras lutas contra o poder: daí que dar fala aos prisioneiros, aos médicos da prisão porque eles confiscam, ao menos por um tempo, o poder de fala da prisão, monopolizado pela administração. “o poder de luta não se opõem ao inconsciente, se opõem ao segredo” p. 76

GD: O marxismo determinou o problema em termos de interesse (o poder é detido por uma classe dominante definida por seus interesses). Mas, como é possível que pessoas que não tenham muito interesse nele sigam o poder? Para GD em termos de investimento, tanto econômico quanto inconsciente o interesse não seja a última palavra. GD explica a partir do conceito de investimento de desejo: que não significa desejar contra o seu interesse, o que seria impossível, mas desejar de uma forma mais difusa e mais profunda do que o seu interesse (afirma que as massas não foram enganadas, em dado momento desejaram o fascismo).  “Há investimento de desejos que modelam o poder e o difundem e que fazem com que o poder exista tanto ao nível do tira quanto do primeiro ministro, sem diferença de natureza” p. 76
MF: As relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do que geralmente se acredita.

MF: Quando se luta contra a exploração é o proletariado que conduz a luta, define os alvos, os métodos, os instrumentos, unir-se ao proletariado é unir-se a eles em sua ideologia, é fundir-se com eles. Mas, se é contra o poder que se luta, todos aqueles que sobre quem o poder se exerce como abuso pode começar a lutar onde se encontram e a partir de sua atividade (ou passividade). E iniciando uma luta que é deles, eles entram no processo revolucionário, como aliado do proletariado, afinal o poder se exerce para manter a exploração capitalista (as mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes, os homossexuais iniciam uma luta contra a forma particular de poder, de controle. Estes movimentos são revolucionários na medida em que sejam radicais, sem reformismos nem compromisso. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Existe um temperamento próprio de cada sexo? Resenha Sexo e Temperamento - Mead

Na introdução do livro “Sexo e Temperamento”, Margaret Mead (1901-1978) discorre sobre a construção dos valores sociais, a partir das características valorizadas e desvalorizadas nas sociedades, mostrando como estas não são fixas, variando no tempo e no espaço. A autora procura mostrar que valores sociais conduzem os indivíduos a certos tipos de temperamento e à aceitação de padrões de comportamento. Para fortalecer seu argumento, Mead mostra como situações aparentemente desvinculadas podem, quando enraizados na cultura, assumir extraordinária força, como o caso dos Mundugumor, que acreditavam que uma criança que nasce com o cordão enrolado no pescoço tem maiores aptidões artísticas. Este caso, assim como outros, por serem muito diferentes da nossa cultura, vemos com distanciamento, considerando-os como frutos da imaginação. Entretanto, vemos com outros olhos quando se trata das várias diferenças entre homens e mulheres, que ainda persistem em nossa sociedade, as quais se procurou

GIDDENS: O ESTADO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

Pergunta para entender o lugar da força: Noção de Estado é válida para todas as sociedades? 1.       A existência de formas político-institucionais diversas 2. Feudalismo : a descentralização dos centros de poder . Funções do Estado desagregadas ao longo da cadeia hierárquica feudal . Soberania fragmentada . Direito consuetudinário e igualitário 3.       Estado absoluto: processo de concentração de diferentes poderes e centralização do poder. . Modernização jurídica: direito romano, lei passa a ter aplicação universal (exceto ao soberano) . Tributação regular e organização das finanças do Estado . Início da separação público x privado . “No Estado absolutista, o processo político deixou de ser primordialmente estruturado pela contínua e legítima tensão e colaboração entre dois centros independentes de autoridade, o governante e as cortes; agora desenvolve-se exclusivamente a partir do governante e em torno deste” (Poggi, livro: a evolução do estado moderno).

A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA

Apostila Parte 1: http://www.scribd.com/doc/71646281/Scan-Doc0040 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 3:  http://www.scribd.com/doc/73691190/Scan-Doc0042 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 2: COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia . 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. REALE, G; ANTISSERI, D. História da filosofia : patrística e escolástica. v.2. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2005. 1. O PENSAMENTO CRISTÃO: A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA "Quem não se ilumina com o esplendor de todas as coisas criadas, é cego. Quem não desperta com tantos clamores, é surdo. Quem, com todas essas coisas, não se põe a louvar a Deus, é mudo. Quem, a partir de indícios tão evidentes, não volta a mente para o primeiro princípio, é tolo" (São Boaventura). A queda do Império Romano foi causada por uma série de problemas internos que fragilizaram o Império e o colocaram à disposição de invasões de outros po