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Texto 1 – Antes, durante e depois do 7 de setembro

 O mundo do bolsonarismo:

Este é o primeiro de uma série de textos que terão por objetivo entender, a partir de dentro de grupos de redes sociais e canais bolsonaristas no YouTube, os seguintes pontos:

A) Como eles interpretam o mundo e suas relações?

B) O que eles defendem e o que atacam?

C) Como eles justificam as suas ações e pensamentos?

D) Quais as ideias que eles mobilizam para manter um certo grau de unidade e engajamento?

O objetivo último destas análises é explicitar como o bolsonarismo veicula noções associadas às palavras democracia e liberdade, de modo a negociar e disputar significados.

É importante ressaltar que não se trata de uma análise acadêmica acabada, mas apenas de pesquisas preliminares, exploratórias, que para a extração e análise dos dados utiliza como metodologia a teoria fundamentada em dados (grounded theory), a partir de um debate teórico metodológico de enquadramento interpretativo. Para entende o objeto a ser estudado, assim como a relevância dos dados a serem analisados, utilizo um enfoque etnográfico, baseado em pesquisas realizadas anteriormente por Cesarino (2019) [1]

Por ser uma análise exploratória, dúvidas, comentários, críticas e observações construtivas são sempre bem-vindas. Diante de um fenômeno tão complexo e compósito como o bolsonarismo, pensar junto pode nos ajudar a visualizar caminhos de ação.

Texto 1 – Antes, durante e depois do 7 de setembro

Nos dias que antecederam ao 7 de setembro, a movimentação dentro dos grupos bolsonaristas nas redes sociais era intensa. A todo momento apareciam postagens sobre como preparar sua faixa para a manifestação, qual deve ser a cor, o design, além de diversos tipos de frases de reivindicação, em diferentes idiomas.

O que estaria em pauta na manifestação do dia 7? Uma gama grande de reivindicações, que iam desde o fechamento do STF ou do impeachment de seus ministros (contra a chamada ditadura da toga), até temas mais genéricos, como a defesa da democracia e da liberdade, passando por pontos contemporâneos como a vacinação e outros que vem acompanhando as manifestações da direita desde pelo menos 2015, ser contra a corrupção e contra o PT. 

Um olhar mais atento para a construção das pautas do movimento do 7 de setembro pode nos ajudar a entender as “narrativas” pós carta à Nação assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e escrita pelo ex presidente Michel Temer. Um mês antes do 7 de setembro, mensagens sobre a “maior manifestação da história do Brasil” já circulavam nas redes bolsonaristas, quase sempre acompanhadas de crítica fortes ao STF, rotulado de corrupto e parcial, acusado de ter sido aparelhado pelo PT e de perseguir Jair Bolsonaro e seus apoiadores. 

Longe de ter se iniciado em 2021, as críticas dos bolsonaristas ao STF já vinham desde 2019, ascendendo a cada nova ação do supremo contra um de seus membros. Eis que durante o mês de agosto, dentre os ministros do STF, um ganha preponderância, Alexandre de Morais (apelidado de Xandão, cabeça de ovo ou Alexandre, o glande).

Na mesma proporção que as ações de Alexandre de Morais fechavam o cerco contra infrações cometidas por bolsonaristas, mais o discurso do “impeachment de Alexandre de Morais”, “fechamento do STF”, “intervenção militar”, “intervenção federal”, “eu autorizo”, “estado de sítio” ganhavam adeptos e passam a aparecer com mais frequência. 

Neste contexto, ganha força a divulgação de “planos de ação”, os quais descreviam cada etapa a ser seguida pelos “soldados de Bolsonaro”, mesmo que cada versão do plano tenha sua particularidade, os pontos em comum mostram a radicalização do discurso de alguns bolsonaristas: o movimento iniciado no dia 7 de setembro seria seguido, nos dias seguintes, pelo fechamento de estradas em certos Estados pelos caminhoneiros, o que levaria ao desabastecimento, a situação levaria o presidente da república a decretar a GLO (Garantia da Lei e da Ordem), com o apoio das forças armadas, sendo que o objetivo desta operação seria enfraquecer o STF e o Congresso brasileiro.

É importante explicitar que, nas redes bolsonaristas, nem todos defendiam o bloqueio das rodovias ou o fechamento do STF, sendo um discurso que começou minoritário e que aos poucos ganhou mais repercussão.

Aproximadamente duas semanas antes dos atos de rua, começaram a circular com mais intensidade nos grupos bolsonaristas postagens e vídeos que procuravam unir ou redefinir as pautas da reivindicação, concentrando-as em um tema, a “liberdade”. Eram postagens que procuravam mostrar que os atos de 7 se setembro não eram contra o STF ou contra um ministro em específico, mas a favor da liberdade, fundamentada nos valores da família e da fé cristã, que consistiria na liberdade de expressão, na liberdade de ir e vir, de tomar vacina ou não, de usar máscara ou não. Aumentou também o número de postagens pedindo para que não se fizesse faixas pedindo a intervenção militar, porque isso tiraria o poder do executivo, além do que, as manifestações deveriam ser democráticas e pacíficas.

Mesmo que a narrativa pela “liberdade” tenha ganhado força no decorrer dos dias antes da manifestação de rua, os discursos mais “radicais” ainda apareciam com muita força. Por isso, veio a grande decepção com o depois do discurso do presidente Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, ficando para alguns bolsonaristas aquela sensação de “é só isso?”. E depois da Declaração à Nação[2] e do pedido de Bolsonaro para que os caminhoneiros desbloqueassem as estradas, o desânimo se transformou em susto, o que para muitos bolsonaristas evoluiu para a desconfiança. Seria este recuo um sinal de fraqueza do mito?

Antes de continuar com a exposição sobre os enquadramentos mobilizados pelos bolsonaristas, cabe falar um pouco mais sobre o sentido de liberdade para estes apoiadores de Jair Bolsonaro. Afinal, como é possível defender a liberdade e ao mesmo tempo ser conservador? O primeiro ponto a se ter em mente quando se fala de liberdade é que estamos diante do que Wendy Brown [3] chama de um Franksteim, formado pelo casamento do neoliberalismo [4] com um conservadorismo radical, forte o suficiente para mobilizar uma parcela da população. Para ilustrar esta construção, Nicolau, Cavalcante e Chaguri (2019) [5] afirmam que existiria uma base comum, os polos neoliberais e conservadores, e os atores ora se aproximariam mais de um polo, ora de outro, sem no entanto, perder uma ligação mínima com ambos os polos.

Do casamento entre o neoliberalismo e o conservadorismo emerge um sujeito diferente daquele sujeito empresarial, que calcula, que almeja otimizar o investimento, típico do liberalismo e de algumas correntes do neoliberalismo. Trata-se de uma “criatura” que “abraça a liberdade sem contrato social, a autoridade sem legitimidade democrática, e a vingança, sem valores e sem futuro” (2018, p.69-10). É um ser raivoso, amoral, com uma liberdade que não se apoia mais em nenhum laço social, em nenhuma coletividade.

A liberdade perde assim seu sentido social, de modo que tudo passa a ser visto a partir da ótica do individual e, neste contexto, torna-se urgente a necessidade de se destruir as políticas progressistas que caracterizam o Estado de Bem Estar Social, enquadradas como “mimimi” pelos bolsonaristas.

É interessante perceber que os bolsonaristas entendem que a liberdade – neste sentido individual e não coletivo – é um direito que encontra-se sob ameaça e os atores desta ameaça são as próprias instituições democráticas. Aqui há uma inversão da lógica, pois não são as instituições democráticas que garantem a liberdade do cidadão brasileiro (já que não se trata de uma liberdade coletiva), elas a ameaçam.

Ainda segundo os bolsonaristas, já que as instituições democráticas ameaçam a liberdade, a responsabilidade pela defesa desta liberdade e, consequentemente, da democracia é do “povo empoderado”, isto é, o povo que perceber seu verdadeiro valor, tendo como principal fundamento a família. E, para tanto, cabe aos apoiadores de Jair Bolsonaro a tarefa de retirar o véu de Maya que impede que o povo perceba a verdadeira situação da nação brasileira, que vive sob uma falsa liberdade e uma falsa democracia, dominada pelos interesses progressivas da esquerda.

Após esta breve análise sobre o conceito de liberdade para os bolsonaristas, voltemos à pergunta: seria este recuo um sinal de fraqueza do mito? Nos dias que se seguiram a publicação da Declaração à Nação, o que se viu foi uma reinterpretação dos discursos e dos fatos, que não procuravam necessariamente negar o recuo do presidente, e sim ressignificá-lo. No sentido de afirmar que a ação de Jair Messias Bolsonaro fora estratégica, pensando no bem-estar do povo brasileiro. Segundo este discurso, enquanto todos esperavam que ele agisse como um verdadeiro golpista, o que só confirmaria o que a oposição insistia em pregar, e justificaria uma suposta reação organizada para tirá-lo do poder, Bolsonaro, “contando com a ajuda do General Heleno”, antecipara a jogada e agiu antes. A carta foi, na verdade, um recuo estratégico. 

Resta, no entanto, a seguinte pergunta: Recuo do quê? Bolsonaro pretendia mesmo um golpe? Segundo os discursos, o presidente Bolsonaro nunca quis um golpe, afinal ele já é o chefe do executivo brasileiro. O que aconteceu foi que os veículos de imprensa que se opõem a Bolsonaro começaram a pintar o 7 de setembro como um golpe e muita gente, inclusive bolsonaristas, compraram esta ideia. A intenção destes veículos de imprensa seria incentivar ações mais radicais de Bolsonaro e seus apoiadores, de modo que uma reação que o tirasse do poder fosse justificada. 

A verdadeira intenção de Jair Bolsonaro com as manifestações seria, ainda segundo os discursos, mostrar o apoio popular que possui, a tal da foto, para que assim pudesse negociar com mais facilidade com o legislativo e o judiciário, poderes que não o estavam deixando governar. E segundo os bolsonaristas, Bolsonaro teria alcançado o seu intento, afinal “o presidente conseguiu colocar um acordo na mesa com o STF” e, caso o supremo descumpra sua parte, “a reação será drástica”, porque agora todos sabem que “o presidente tem a população ao seu lado”.

Houve também o discurso de que “Bolsonaro sempre tem uma carta na manga”, que “tem coisas que só ele sabe” e não pode contar, por isso, ele precisa “que confiemos nele”, ele precisa do apoio do povo para alcançar o seu objetivo, isto é, livrar o Brasil da corrupção (o que é sinônimo de esquerda), garantir que a sociedade brasileira se paute nos valores da família cristã, pois só assim será construído um Brasil prospero e livre de verdade. 

Tendo como base os estudos de Cesarino (2021) [6], os conteúdos tratados até aqui podem ser sintetizados em quatro funções básicas: (1) traçar uma fronteira amigo-inimigo; (2) reforçar o carisma do líder; (3) manter o público mobilizado por meio de mensagens alarmistas ou conspiratórias; (4) inverter as acusações dos oponentes; (5) deslocar as principais fontes de conhecimento oficial, como a imprensa

É interessante ressaltar que, com todo este esforço narrativo, a pesquisa do Datafolha [7], divulgado em 16 de setembro, mostrou que o índice de reprovação ao atual presidente brasileiro aumentou após as manifestações de 7 de setembro. Se a intenção de Bolsonaro e seus apoiadores for ganhar as eleições de 2022, este discurso pode não estar “colando” tanto como eles gostariam.

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1- CESARINO, Letícia. Identidade e representação no bolsonarismo. In: Revista de Antropologia, São Paulo, n. 62 (3), 2019.

2- https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/notas-oficiais/2021/nota-oficial-presidente-jair-bolsonaro-09-09-2021

3- BROWN, W. Neoliberalism's Frankenstein: Authoritarian Freedom in Twenty-First Century “Democracies”. Critical Times, 2018.

4- É interessante ressaltar, que para alguns autores, como a Camila Rocha (2018), se trata de ultraliberalismo, o que poderia ser chamado também de libertarianismo. Ver em: ROCHA, Camila. Menos Marx, Mais Mises: uma gênese da nova direita brasileira. Tese (doutorado). São Paulo, 2018. 

5- NICOLAU NETTO, Michel; CAVALCANTE, Sávio M.; CHAGURI, Mariana M. O homem médio e o conservadorismo liberal no Brasil contemporâneo: o lugar da família, 10/2019, Científico Nacional, 43º Encontro Anual da Anpocs, Vol. 1, pp.1-3, Caxambu, MG, BRASIL, 2019. 

7-  CESARINO, Letícia. Pós-verdade e a crise do sistema de peritos: uma explicação cibernética. Ilha – Revista de Antropologia 23 (1): 73-96, 2021.  




 


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