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Não sou cobaia: os discursos sobre a vacinação contra a Covid-19


A crítica dos bolsonaristas sobre a vacinação contra a Covid-19 perpassa o tema da liberdade, isto é, a maior parte das postagens analisadas não se colocavam contra a vacinação de modo geral, mas contra as vacinas para combater a Covid-19, que ainda se encontrariam em fase de experimentação e cujos efeitos colaterais não seriam plenamente conhecidos.

Nas redes sociais, apareceram discursos afirmando que as vacinas poderiam causar problemas colaterais, os quais seriam encobertos pela mídia. Além do que, haveria indícios de que a própria vacina estivesse criando as mutações do vírus da Covid-19.

Os bolsonaristas criticam aqueles que não acreditam que a imunização natural seja suficiente para combater o coronavírus, defendem que se alguém já contraiu o vírus e se curou, não precisaria tomar a vacina. Afinal, haveria relatos de médicos dizendo que fizeram exames em pacientes vacinados e verificaram que o índice de anticorpos neutralizantes eram muito baixos, o que mostraria a baixa eficácia da vacina. Por isso, os bolsonaristas defendem que seria necessário fazer a titulação de anticorpos neutralizantes antes de se aplicar a vacina, porque esta poderia diminuir a imunidade da pessoa, afinal, a eficácia da vacina, em certos casos, seria menor do que a imunidade natural.

Existem também discursos que afirmam haver relatos de pessoas que tomaram a vacina, inclusive a 2a dose, e poucos dias depois contraíram Covid-19, o que não ocorreria com a imunização natural, comprovando que esta é melhor do que aquela. 

Por isso, segundo os bolsonaristas, fica a questão: por que a insistência em se tomar vacinas ainda experimentais e com baixa eficácia? A resposta estaria no campo econômico e na busca por controle.

Afirmam que há interesses econômicos em jogo. Que as vacinas vem rendendo milhões para as empresas farmacêuticos. Há também discursos que sustentam que a Google possui empresas subsidiárias que produzem vacinas, assim como possui parceria com outras empresas farmacêuticas. Por isso, a Google (que em outros discursos é substituída pela China) estaria interessada na vacinação da população mundial tanto por uma questão econômica, quanto por uma questão de controle. A noção de controle permeia tanto o entendimento de que a Google (ou a China) viu na pandemia uma oportunidade para realizar experimentação com humanos (a vacina é experimental), quanto no sentido de que a vacina poderia mudar o DNA (este último discurso circulou em menor quantidade). O ponto central dos discursos analisados é que a vacina e o passaporte sanitário são entendidos como uma nova arma de controle.

A vacinação obrigatória e o passaporte sanitário seriam um desrespeito à liberdade dos cidadãos. Neste contexto, vacina obrigatória é entendida como abuso de autoridade, violação e desrespeito à dignidade, integridade e liberdade individual de decisão, isto é, uma forma de autoritarismo. Os bolsonaristas defendem que as decisões tomadas pelos indivíduos sobre o que fazer de sua vida e de sua saúde não dependem do aval do governo ou de uma determinada empresa. Afinal, não se pode impor um modo de pensar para uma pessoa. 

Assim, aqueles que não querem tomar a vacina precisam ter sua liberdade respeitada, e não podem ser restringidos de nenhum modo, por exemplo, ser impedidos de entrar em certos estabelecimentos, viajar ou se locomover. Isso é considerado pelos bolsonaristas como uma forma de autoritarismo. Seria a imposição de um modo de pensar a uma outra pessoa.

Segundo os bolsonaristas, nesta sociedade controlada, o pensamento independente está sendo rapidamente abolido, as pessoas estão perdendo a capacidade de tomar decisão, de seguir sua própria verdade. Ainda segundo este discurso, o governo e os interessados em controlar a população vendem o discurso do “apenas”, isto é, “é apenas uma máscara”; “é apenas uma vacina”, “é apenas uma forma de controle para que tudo volte ao normal”. E, a partir do discurso do “apenas”, as liberdades seriam tolidas, para que o poder continue nas mãos da esquerda (em sentido amplo, que abrange até mesmo o governador de São Paulo, João Dória), patrocinados por empresas e bilionários (em muitos discursos aparece a referência à China), que querem impor um modo de vida contrário aos valores da família cristã. 

Por isso, a luta não é contra a vacinação em geral, mas contra a obrigatoriedade desta vacina em fase de experimentação. É uma luta em defesa da liberdade, assim como uma luta em defesa dos valores da família. Neste sentido, os bolsonaristas entendem que o segredo da felicidade é a liberdade e o segredo da liberdade é a coragem, por isso “é preciso lutar por nossa liberdade e por nossos filhos”.

No entanto, esta luta pela liberdade e pela moral não é fácil. Segundo os bolsonaristas, vivemos em “tempos sombrios”, no qual falar a verdade se tornou sinônimo de perseguição. Afirmam que a crítica que antes era tão defendida por estudantes e pesquisadores da área de humanas virou caso de polícia. Isso mostraria, segundo os bolsonaristas, que vivemos em uma sociedade pautada pelo controle, pela manipulação, a qual deixou as pessoas mais dependentes, fracas emocionalmente e que se auto vitimizam. Viveríamos na sociedade do mimimi, na qual questionar virou crime.

É interessante perceber que há nas posições expostas acima a presença de discursos que buscam incitar medos (Kalil, 2021)1, como o medo da corrupção, o medo do cerceamento das liberdades e o medo do controle. Podemos tentar entender a relação entre as teorias contra a vacinação e a mobilização política de medos a partir da teoria de Ruth Wodak (2015)2. Segundo Wodak, as teorias conspiratórias alcançam uma certa “credibilidade” quando mobilizam alguns elementos: (a) a autoridade, ocorre quando um médico faz um vídeo ou uma postagem pautando sua posição no seu grau de conhecimento profissional. Como os vídeos de médicos contra a vacina, ou a favor dos medicamentos preventivos contra a Covid-19; (b) a moral, ligada à ideia de mutação genética e experimentação com seres humanos. Neste ponto entra os discursos propagados pelo presidente Jair Bolsonaro sobre a possibilidade de se tornar “jacaré”3 ao tomar a vacina, ou mesmo as falas sobre o risco “de crescer barba nas mulheres” e os homens “começarem a falar fino”4; (c) a racionalização, que se refere aos supostos estudos que dariam suporte às teorias defendidas. Neste ponto, é importante observar que os vídeos que propagavam teorias da conspiração ou os negacionistas afirmavam que se pautavam em pesquisas, sendo que muitos deles nomeavam e datavam a referida pesquisa; (e) “mitopoiesis”, quando as teorias conspiratórias e as narrativas relacionadas ao medo se juntam e criam grandes estruturas narrativas, podendo operar como discursos oficiais do Estado e como base para a elaboração de políticas públicas (Kalil, 2021). 

Assim, apoiando-se em estudiosos do tema (Kalil, 2021, Wodak, 2015, Empoli, 2019)5, pode-se inferir que a mobilização política de medos não deve ser analisada simplesmente na chave da irracionalidade, dado o seu potencial para a negociação e disputa de significados (Melucci, 2001; Wodak, 2015)6. Neste entendimento, a mobilização política de medos atende aos interesses de manter o pânico moral (Kalil, 2021), podendo, assim, reforçar uma perspectiva específica em relação ao Estado, governos e sociedade. 

A mobilização de medos abarca também a interpretação sobre o trabalho da imprensa. Na visão dos bolsonaristas, quando eles realizam uma crítica são colocados como antidemocráticos ou negacionistas, mas quando eles ou o presidente são criticados, nada acontece. Um exemplo bem explorado nos grupos de redes sociais foi a reportagem da revista Isto é, que colocou uma fotografia de Bolsonaro com um bigode de Hitler. A argumentação que circulou nos grupos foi que a liberdade da revista deve ser preservada, pois trata-se da liberdade de imprensa e por isso, o presidente não tomaria medidas duras contra a revista. Afinal, faz parte do jogo democrático. Por outro lado, os bolsonaristas indagam sobre o que ocorreria se no lugar de Bolsonaro estivesse a foto de um dos ministros do STF. Será que eles aceitariam? Portanto, caberia perguntar quem realmente seria autoritário nesta história.

A imprensa, segundo os bolsonaristas, seria mentirosa e propagadora de fake news. Neste contexto, entendem que foram as mentiras propagadas pela mídia a causa da diminuição do poio de Bolsonaro. Ou seja, não foi a desastrosa ação na pandemia (afinal a atuação do presidente teria sido adequada), nem os problemas econômicos (é apenas pressão da oposição), nem as denúncias de corrupção (seriam fatos inventados), o que vem diminuindo o apoio de Bolsonaro são as manipulações midiáticas, que por terem perdido benefícios do governo, atacam o presidente. A mídia estaria empenhada em restaurar a velha ordem corrupta existente no Brasil. 

E aqui aparece também a ideia de manipulação: a mídia tradicional estaria acostumada a manipular os cidadãos, atacando os valores da família tradicional, no entanto, quando surgiram as mídias alternativas (os jornais e canais conservadores), o cidadão teria começado a “pensar por conta própria”, e este seria mais um motivo pelo qual a mídia tradicional persegue Bolsonaro. 

Para os Bolsonaristas, esta mídia corrupta apoiaria tanto a vacinação contra a Covid-19, quanto o passaporte sanitário, como uma forma de atacar Bolsonaro e tentar reaver seus benefícios econômicos e de controle. Portanto, ao mesmo tempo que há uma defesa da liberdade de expressão, há um forte ataque às mídias tradicionais. 

É interessante ressaltar que nos grupos analisados aparece em vários momentos a ideia de que o conhecimento liberta da manipulação. Neste contexto, os “ativistas bolsonaristas”, os “influenciadores”, os “patriotas” de modo geral, através dos vídeos e das mensagens nas redes sociais teriam por função abrir os olhos daqueles que ainda não perceberam a verdade dos fatos e, que por isso, se deixam manipular. 

Portanto, para os bolsonaristas, cada um sabe sobre seu próprio corpo e, por isso não deveria ser obrigado a tomar vacina, nem ser punido por sua decisão. E os discursos que falam da necessidade de tomar a vacina para proteger o coletivo são vistos como forma de manipulação: venderiam a ideia de “benefício coletivo” como uma forma de camuflar os reais objetivos econômicos e de controle envolvidos na vacinação contra Covid-19.

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1-KALIL, I., SILVEIRA, S.C., PINHEIRO, W., Kalil, A., PEREIRA, J.V., AZARIAS, W. and AMPARO, A.B. (2021) Politics of fear in Brazil: Far-right conspiracy theories on COVID-19, Global Discourse, vol 11, no 3, 409–425.

2-WODAK, R.The Politics of Fear: What Right-wing Populist Discourses Mean, London: Sage, 2015. 

3-https://istoe.com.br/bolsonaro-sobre-vacina-de-pfizer-se-voce-virar-um-jacare-e-problema-de-voce/

4-https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/12/video-viral-de-bolsonaro-sobre-covid-traz-piada-homofobica-sobre-ozonioterapia.shtml

5-EMPOLI, Giuliano da. Os engenheiros do caos. Tradução de Arnaldo Bloch.São Paulo: Vestígio. 2020. 

6-MELLUCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001. 

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