Pular para o conteúdo principal

Histórias que merecem ser contadas - Apontamentos sobre “Eu, Tituba: Bruxa negra de Salem”

 

Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês no convés do Christ the King, num dia de 16**, quando o navio zarpava para Barbados. Dessa agressão nasci. Deste ato de agressão e desprezo (CONDÉ, M. Eu, Tituba: Bruxa negra de Salém. Primeiro parágrafo1)


Sejam nas salas de aula, sejam nas conversas no dia a dia, aprendemos desde cedo a história da nossa terra natal e das pessoas que fizeram esta história possível. Aprendemos que existiu um homem chamado Cabral que descobriu o que hoje chamamos de Brasil, e que um outro homem chamado Dom Pedro II declarou a independência deste mesmo país.

Mesmo que nada fosse pronunciado sobre a cor da pele destes homens, não seria difícil intuir que são homens brancos. Isso porquê estamos falando em um contexto que apenas os homens e brancos tinham voz ativa, que os possibilitava ditar os registros históricos, ou o regime de verdade, como certa vez escreveu o filósofo Foucault2. Fato que também se relaciona ao chamado lugar de fala, vozes que falam e são ouvidas, enquanto outras passam despercebidas, muito bem trabalhado pela filósofa, feminista e escritora Djamila Ribeiro3.

Ao olharmos para trás podemos dizer que hoje em dia as coisas são diferentes, que as desigualdades raciais e de gênero já não são tão profundas, se olharmos para o presente e para o futuro, no entanto, percebemos quantos outros pontos ainda precisam ser conquistados. Ao analisar a população brasileira, por exemplo, vemos que as minorias (grupos marginalizados na sociedade) ainda ocupam poucos espaços políticos e acadêmicos sendo menos representadas e, por consequência, menos ouvidas.

É interessante notar que ao pensarmos no nosso passado, e nas vozes que foram continuamente esquecidas, percebemos que a nossa identidade enquanto nação se formou através de lacunas de representação. Se considerarmos que a nossa identidade, ou seja, quem somos, se baseia na nossa memória, nos fatos e acontecimentos passados e mesmo antepassados e que a noção de nação também é moldada pela memória coletiva, ou os registros históricos, capazes de criar vínculos e características que nos unem, percebemos que os fatos e heróis históricos cumprem um papel decisivo neste processo.

Assim, a representação de figuras do passado tem a capacidade de moldar interpretações sobre o presente e o futuro, de modo que a restrição de vozes que podem ser ouvidas, ou de histórias que mereçam ser contadas, pode incitar formas de preconceito e uma visão superficial sobre a formação histórica de um país e dos integrantes que o compõem.

São estes e outros questionamentos que vem a mente quando lemos o livro “Eu, Tituba: Bruxa negra de Salém”, de Maryse Condé, que buscou mostrar, através de fatos históricos e ficcionais, a bibliografia de uma mulher negra escravizada, que aparece como narradora da sua própria história.

É um livro que se passa, em grande parte, na sociedade puritana dos EUA no século XVII, com seus preconceitos raciais e papéis de gêneros bem delimitados, de modo que as figuras femininas eram circunscritas a certos espaços, e qualquer tentativa de ultrapassar esta barreira era punida com alto grau de crueldade. Se a opressão já era forte sobre as mulheres brancas, o que dizer então das mulheres negras.

É interessante perceber a intertextualidade com o livro Letra Escarlate de Nathaniel Hawthorne, cuja personagem principal, Hester, aparece também no livro que trata de Tituba. Após ser capturada por bruxaria, Tituba é enviada para uma prisão, lá ela conhece Hester, uma mulher grávida que havia sido presa por cometer adultério. E entre estas duas personagens se passa diálogos sobre o papel da mulher na sociedade do século XVII, assim como as necessidades de mudanças. Hester procura mostrar para Tituba que a vida é muito doce para os homens e muito dura para as mulheres, e que mesmo o amor, que é vendido como algo sublime, não passa de uma forma de fazer com que as mulheres aceitem a submissão.

Um outro ponto interessante para se ressaltar no livro é o papel da religiosidade. Tituba é uma negra que fala com os mortos, em uma sociedade que não aceitava outras crenças, rotulando-as de bruxaria, como bem mostra o caso de Salém.

Quando Tituba vai trabalhar, como escrava, na casa de um judeu, viúvo e com nove filhos percebe que a perseguição religiosa não recaí apenas sobre os brancos, estando muito além da simples cor de pele. Tituba não consegue entender o uso dos nomes ditos sagrados para justificar atos violentos contra aqueles que não proferem a mesma forma religiosa. E ela não é a única, afinal a humanidade ainda hoje convive com esta dúvida.

O livro de Tituba, ao trazer ao primeiro plano a história de uma mulher negra escravizada, que conta a própria história, a partir das próprias palavras, levanta questionamentos sobre uma visão de mundo do século XVII que encontra reverberação nos dias atuais, seja no que diz repeito a figura do feminino na sociedade (veja o aumento do caso de feminicídio no Brasil em 2020, por exemplo)4, seja na intolerância religiosa (cristão que ataca terreiro de candomblé5, muçulmano que ataca igrejas em pleno século XXI6, só para ficar em alguns exemplos), seja pelo racismo7 (basta olhar as mortes de negros por policiais nos Estados Unidos ou nas cidades brasileiras).

Condé nos mostra de maneira esplendorosa que olhar para o passado de forma ampla e crítica, dando voz àqueles que foram silenciados, permite identificar a violência simbólica8 presente na sociedade atual, assim como fornecer as bases para que ela possa ser combatidas. De modo que a diversidade de cores e histórias permitam uma visão mais ampla sobre nós mesmo e sobre o mundo ao nosso redor.

___________________________________

1CONDÉ, Maryse. Eu, Tituba, feiticeira... negra de Salem. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

2FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Curso no Collège de France, 1979-1980 (excertos). Tradução de Nildo Avelino. Rio de Janeiro: Achiamé, 2010

3RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017. 112 p.p. (Feminismos Plurais),

4https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/06/10/com-violencia-domestica-em-alta-na-pandemia-feminicidios-crescem-22-no-pais

5https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/29/terreiro-de-candomble-e-depredado-em-nova-iguacu-religiosos-foram-expulsos.ghtml

6https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54732152

7https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/27/assassinatos-de-negros-aumentam-115percent-em-dez-anos-e-de-nao-negros-caem-129percent-no-mesmo-periodo-diz-atlas-da-violencia.ghtml

8BOURDIEU, P. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2000


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Existe um temperamento próprio de cada sexo? Resenha Sexo e Temperamento - Mead

Na introdução do livro “Sexo e Temperamento”, Margaret Mead (1901-1978) discorre sobre a construção dos valores sociais, a partir das características valorizadas e desvalorizadas nas sociedades, mostrando como estas não são fixas, variando no tempo e no espaço. A autora procura mostrar que valores sociais conduzem os indivíduos a certos tipos de temperamento e à aceitação de padrões de comportamento. Para fortalecer seu argumento, Mead mostra como situações aparentemente desvinculadas podem, quando enraizados na cultura, assumir extraordinária força, como o caso dos Mundugumor, que acreditavam que uma criança que nasce com o cordão enrolado no pescoço tem maiores aptidões artísticas. Este caso, assim como outros, por serem muito diferentes da nossa cultura, vemos com distanciamento, considerando-os como frutos da imaginação. Entretanto, vemos com outros olhos quando se trata das várias diferenças entre homens e mulheres, que ainda persistem em nossa sociedade, as quais se procurou

GIDDENS: O ESTADO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

Pergunta para entender o lugar da força: Noção de Estado é válida para todas as sociedades? 1.       A existência de formas político-institucionais diversas 2. Feudalismo : a descentralização dos centros de poder . Funções do Estado desagregadas ao longo da cadeia hierárquica feudal . Soberania fragmentada . Direito consuetudinário e igualitário 3.       Estado absoluto: processo de concentração de diferentes poderes e centralização do poder. . Modernização jurídica: direito romano, lei passa a ter aplicação universal (exceto ao soberano) . Tributação regular e organização das finanças do Estado . Início da separação público x privado . “No Estado absolutista, o processo político deixou de ser primordialmente estruturado pela contínua e legítima tensão e colaboração entre dois centros independentes de autoridade, o governante e as cortes; agora desenvolve-se exclusivamente a partir do governante e em torno deste” (Poggi, livro: a evolução do estado moderno).

A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA

Apostila Parte 1: http://www.scribd.com/doc/71646281/Scan-Doc0040 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 3:  http://www.scribd.com/doc/73691190/Scan-Doc0042 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 2: COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia . 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. REALE, G; ANTISSERI, D. História da filosofia : patrística e escolástica. v.2. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2005. 1. O PENSAMENTO CRISTÃO: A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA "Quem não se ilumina com o esplendor de todas as coisas criadas, é cego. Quem não desperta com tantos clamores, é surdo. Quem, com todas essas coisas, não se põe a louvar a Deus, é mudo. Quem, a partir de indícios tão evidentes, não volta a mente para o primeiro princípio, é tolo" (São Boaventura). A queda do Império Romano foi causada por uma série de problemas internos que fragilizaram o Império e o colocaram à disposição de invasões de outros po