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Covid-19 – Redes sociais e a politização da cura

 

A pandemia de Covid-19 ampliou a utilização das plataformas digitais, configurando um ambiente propício para se analisar tanto as consequências do acúmulo de dados comportamentais nas mãos das gigantes digitais, quanto as disputas discursiva e os enquadramentos propagados nas redes sociais1, a fim de influenciar a opinião pública, principalmente no que diz respeito à politização da cura.

Com o objetivo de explorar os modos através dos quais os discursos contra e a favor da eficácia da cloroquina no combate da pandemia são construídos, espalhados e como eles produzem certos tipos de enquadramentos, a pesquisa se dividiu em dois momentos: a) realizou-se um estudo quantitativo a partir da análise de rede de 10.000 mil tweets, para verificar o alcance e a formação de clusters, que refere-se ao processo de classificar os nós ou os links (edges ou ligações) de forma que aqueles com determinados atributos ou propriedades similares fiquem no mesmo "conglomerado"2, utilizando como ferramenta o software Gephi; b) Dentre os tweets extraídos, foram analisados qualitativamente 100 tweets, selecionados através da medida de centralidade, buscando verificar quais nós foram mais centrais para as redes e por quê. A métrica selecionada foi a dos nós com maior grau de entrada (Indegree), representados pela quantidade de conexões recebidas (menções ou retweets). Os nós com maior grau de entrada são considerados nós influentes na conversação na rede, de modo particular, porque seu discurso é reproduzido e legitimado (RECUERO, 2017). Utilizou-se como metodologia de análise a grounded theory (GT), também conhecida como teoria fundamentada em dados, através de códigos e categorias presentes na construção do discurso, utilizando como ferramentas o Excel e o software Atlas.ti, a fim de verificar como ocorre o enquadramento interpretativo com relação à eficácia ou não da Cloroquina 3

Redes Digitais e o enquadramento discurso – 

coleta 06 de julho

Após extraídos, os tweets foram divididos entre “a favor da cloroquina”, “contrário a cloroquina” e “indefinido”, seleção realizada por meio de uma leitura minuciosa e classificação dos tweets, de acordo com as palavras e imagens presentes. Quando o twitter apenas mencionava a palavra “cloroquina” sem algo que pudesse direcionar um posicionamento a respeito de seu uso ou eficácia, tal mensagem era classificada como indefinida, contabilizando 64% a favor do medicamento no combate à pandemia, 24% contra e 11% indefinido, rede representada no grafo abaixo:



Grafo I: Rede dos tweets contra/favor da cloroquina – coleta 06 de julho, a partir do software Gephi (autoria própria)


A partir desta primeira seleção dos tweets contra e a favor ao uso da cloroquina no combate da pandemia de Covid-19 foi possível observar uma intensa movimentação de mensagem sobre a cloroquina, com 3.600 nós (usuários), 3973 arestas, formando 323 comunidades (conjunto de nós agrupados), com a prevalência de tweets a favor da eficácia do medicamento no combate da pandemia (64%), o que aparece também na área mais concentrada do grafo, localizado no centro da figura. Os tweets contrários ao uso da cloroquina são 24% do total e estão representados pela área periférica do grafo.

A partir destes dados foi possível concluir que os usuários a favor do uso da cloroquina no combate à pandemia eram mais ativos no Twitter no dia 06 de julho (maior quantidade de nós) e que as mensagens por eles propagados eram mais compartilhadas (maior quantidades de arestas).

Ao se analisar apenas os tweets contra à eficácia da cloroquina no combate à Covid-19 foram encontrados 1.154 nós, 971 arestas, com 199 comunidades, com ligações mais esparsas e menos conectadas, enquanto a rede a favor da cloroquina apresentou 2.555 nós com 2.870 arestas e 179 comunidades, com as ligações mais concentradas e conectadas. O fato da rede a favor da cloroquina ter menos comunidades mostra que esta rede é menos compartimentada em sub-redes se comparada as redes contra a cloroquina, ou seja, é mais compacta.

O grau ponderado médio da rede crítica da eficácia da cloroquina no combate da pandemia, o qual indica a diversidade das relações foi de 0,927. Já nas redes a favor da eficácia da cloroquina no combate à Covid-19, o grau ponderado médio foi de 1,233 e, como esta média é calculada somando os pesos das ligações dos nós, isso mostra que os nós da rede a favor da cloroquina possuem mais conexões entre si, ou seja, as mensagens circulam com maior intensidade.

Com a codificação realizada a partir dos 25 tweets com maior compartilhamento, foi possível constatar que os defensores do uso da cloroquina se colocaram como defensores do atual governo brasileiro, sendo que o nome do presidente do Brasil apareceu 10 vezes, além de se auto declararem “defensores do bem coletivo” (no sentido de benefício da população), já que este código apareceu 8 vezes, com um coeficiente de coocorrência de 0,294.. Há um forte ataque aos opositores, o que pode ser observado nas menções aos códigos: “governadores” que aparece 4 vezes, assim como “esquerda” que também aparece 4 vezes, os quais se ligam, principalmente, aos códigos: a) “corrupção” apareceu 9 vezes, com o coeficiente de coocorrência entre os códigos governadores/corrupção sendo de 0,44, e dos códigos esquerda/corrupção de 0,22; b) “descaso com a população” que aparece 7 vezes, sendo que o coeficiente de coocorrência entre os códigos governadores/descaso com a população é de 0,38, enquanto a relação entre os códigos descaso com a população/corrupção é 0,33; c) “manipulação de informação contra a cloroquina”, com 12 menções, com coeficiente de coocorrência entre os códigos corrupção/manipulação de informação sendo de 0,31, enquanto entre os códigos esquerda/manipulação de informação foi de 0,23.

Do exposto, foi possível inferir que há uma ligação muito estreita entre “contrários ao uso da cloroquina” e “opositores ao atual governo brasileiro”, ou seja, se opor à cloroquina aparece como sinônimo de ser contrário ao governo, demonstrando uma polarização do discurso e uma politização da cura da pandemia de Covid-19.

Os tweets contrários à eficácia da cloroquina no combate à pandemia procuraram defender sua posição principalmente criticando Jair Bolsonaro, o código “presidente” apareceu 14 vezes, mantendo estreita ligação com os códigos “descaso com a população” (coeficiente de coocorrência de 0,55), “corrupção” (coeficiente de coocorrência de 0,47), genocídio/povo indígena5 (coeficiente de coocorrência de 0,57) e “manipulação de informação” (coeficiente de coocorrência de 0,53).

Um outro ponto interessante de se notar foi que os discursos a favor da cloroquina, em geral, não levaram em consideração o fator pesquisa científica (código “pesquisa” mencionada apenas 2 vezes), mas sim relatos pessoais de pessoas que se curaram (código “relatos pessoais” mencionado 5 vezes) e relatos de médicos (código “comprovação médica” com 10 menções)6. Enquanto os tweets contrários à cloroquina se apoiaram mais fortemente na visão científicas para mostrar a ineficácia do medicamento no combate da pandemia (o código “falta de evidência científica” apareceu 18 vezes, enquanto “pesquisas contrárias ao uso da cloroquina” apareceu 4 vezes).

Também foi possível perceber que um grupo discursivo procura rotular o outro como propagadores de desinformação: os discursos contra a cloroquina procuram enquadrarem aqueles que a defende como sendo “propagadores de desinformação” (código que aparece 13 vezes). O mesmo movimento aparece nos discursos a favor da cloroquina (código apareceu 8 vezes). Este processo conduz a, no mínimo, duas consequências, a deslegitimação do discurso de oposição e o esvaziamento do debate de ideias, afinal se o discurso de oposição se pauta em falsidades, não merece ser debatido.

Para esta análise, além de codificar as mensagens propagadas, também foi realizada a codificação do tipo de propagador, ou seja, a qual categoria o emissor da mensagem pertence, a fim de analisar os tipos de influenciadores. Para construir a categoria dos influenciadores foram consideradas na análise não apenas a mensagem em si, mas o perfil do usuário.

Os influenciadores em conversações políticas nas mídias sociais são os usuários que de alguma forma podem convencer outros usuários a mudarem suas opiniões ou afetar a estrutura da discussão política como um todo, dando maior visibilidade a certas mensagens (DUBOIS & GAFFNEY, 2014).

Dentro da categoria dos influenciadores, seguindo as análises prévias dos dados coletados e a interpretação de SOARES et al (2018), criou-se os seguintes códigos dentro da categoria de influenciadores: (1) Líderes de opinião: usuários que influenciam devido a sua reputação social, sendo, na maioria faz vezes, “pessoas públicas”, como políticos, jornalistas, celebridades, blogueiros e etc; (2) Influenciadores de conteúdo: usuários capazes de influenciar as discussões a partir do conteúdo que produzem, como veículos jornalísticos, que possuem reconhecimento social devido a sua atividade; (3) Ativistas: São usuários com posição política demarcada e que são muito ativos nas mídias sociais, buscando sempre reforçar sua agenda política.

Em relação aos usuários que tiveram suas mensagens mais retuitadas, foram encontrados os seguintes tipos de influenciadores: a) nos tweets a favor da eficácia da cloroquina no combate da pandemia apareceram 14 ativistas, 8 líderes de opinião e 3 influenciadores de conteúdo; b) nos tweets contrários à eficácia da cloroquina no combate da pandemia foram encontrados 14 líderes de opinião,7 influenciadores de conteúdo, 3 ativistas e 1 conta inativa.

Foi possível perceber, portanto, que no grupo a favor da cloroquina figura principalmente conta de ativista (14 vezes), ou seja, pessoas claramente vinculadas a uma posição política, que produzem ou retuítam conteúdo político, sem possuir cargos públicos, nem ser vistos como especialistas ou influentes em outros meios digitais. Estes usuários atuam ativamente através de retweets ou produção de mensagens, em geral de cunho crítico, com viés político.

A prevalência de mensagens propagadas por não especialistas na área refletem uma preponderância de discursos com menor credibilidade, apesar de dentro da rede receberem muitos compartilhamentos. O que mostra que, em grande parte, o grau de conhecimento do produtor da mensagem não é um quesito levado em consideração ao se propagar uma mensagem. Como se a legitimidade ocorresse no próprio processo de circulação da mensagem e na quantidade de retweets ou comentário que ela recebeu.


Redes Digitais e o enquadramento discurso – 

coleta 09 de julho

Na coleta realizada no dia 09 de julho, dois dias depois do atual presidente do Brasil ter sido diagnosticado com Covid-19, encontrou-se uma preponderância maior de tweets contrários a cloroquina, o que tem como uma das explicações o fato de que no dia 08 de julho a mídia publicou diversas reportagens afirmando que Jair Bolsonaro realizaria dois eletrocardiogramas por dia7, a fim de se precaver contra os efeitos colaterais da cloroquina.

Os tweets a favor da eficácia da cloroquina na cura da pandemia alcançaram 35%, enquanto os contra chegaram a 59% e os indefinidos a 6%. Apesar do número de tweets contra a cloroquina serem em maior número, ao se analisar os grafos, é possível perceber que a rede dos apoiadores da cloroquina é mais complexa, ou seja, os clusters são mais integrados. Tal constatação segue a interpretação realizada no dia 06 de julho, de que o mais importante na rede de apoiadores da cloroquina não é o maior espalhamento da mensagem, mas o engajamento que ela produz, ou seja, a capacidade de ser reverberada dentro de um grupo específico (bolha digital), de modo a fortalecer o pertencimento a tal grupo.

Assim, mesmo que as mensagens contra a cloroquina sejam em maior número, elas não reverberam tanto. Para exemplificar, as duas mensagens mais retuitadas contra a cloroquina alcançaram, respectivamente, 565 e 231 compartilhamentos, enquanto as que eram a favor da cloroquina, receberam 1105 e 427 compartilhamentos, um número mais expressivo, o que pode ser visto nos grafos a seguir: 

Grafo IV: Rede de tweets a favor e contra a cloroquina – Coleta 09 de julho, a partir do software Gephi (autoria própria)

A parte mais concentrada da imagem (em tons mais avermelhados) representa os tweets a favor da cloroquina, mostrando a presença de um grupo compacto, dentro do qual as mensagens circulam, são compartilhadas com mais intensidade, de modo que a veracidade da interpretação ganha legitimidade dentro deste grupo. É o processo de criação de enquadramentos, de interpretação sobre os fatos, que no caso das redes sociais, se afirmam e se legitimam a partir do compartilhamento.

Ao se analisar em separado as duas redes, é possível notar suas particularidades, referentes ao alcance das arestas e a clusterização8. Com 4.179 nós, e 4.069 arestas (relações), é possível notar que na rede contra a eficácia da cloroquina no combate à Covid-19, há comunidades mais espalhadas, conseguindo assim disseminar mais as mensagens, que se comunicam de forma menos compacta (arestas mais esparsas). Enquanto a rede a favor da eficácia da cloroquina no combate à pandemia apresentou 3987 nós e 4799 arestas.

Ao se calcular a modularidade, cálculo que detecta comunidades, medindo quão bem uma rede se decompõe em comunidades menores e modulares, ou seja, descreve como a rede é compartimentada em sub-redes, de modo que um alto índice de modularidade indica estrutura interna sofisticada, encontrou-se 414 comunidades na rede contra a eficácia da cloroquina e 246 na rede a favor da cloroquina no combate da pandemia, mostrando que a rede a favor da eficácia da cloroquina é menos compartimentada em sub-redes se comparada as redes contra a cloroquina, ou seja, é mais compacta, o que já ocorreu na análise do dia 06 de julho.

O grau ponderado médio da rede crítica da eficácia da cloroquina no combate da pandemia foi de 0,988. Já nas redes a favor da eficácia da cloroquina no combate à Covid-19, o grau ponderado médio foi de 1,215 e, como esta média é calculada somando os pesos das ligações dos nós, isso mostra que os nós da rede a favor da cloroquina possuem laços mais fortes em comparação com a rede contra a cloroquina, o que também já ocorreu na análise de 06 de julho.

A partir da codificação foi possível perceber que os opositores da eficácia da cloroquina buscaram atacar mais fortemente a figura do atual presidente do Brasil, se comparado com a codificação feita no dia 06 de julho. Um ponto interessante a se notar, é que os opositores da cloroquina não buscaram, através do discurso, criar uma identidade positiva, mas sim negativa, ou seja, eles se afirmam negando/criticando os apoiadores do atual presidente brasileiro, do mesmo modo que ocorreu na coleta do dia 06 de julho. O que pode ser comprovado ao se verificar que, na rede crítica à eficácia da cloroquina no combate da pandemia, o código "Bolsonaro- irresponsável/desgoverno" apareceu 20 vezes, enquanto o código "Bolsonaro - garoto propaganda da cloroquina" obteve 11 menções.

De modo geral, o atual presidente do Brasil foi citado nominalmente 20 vezes nos tweets críticos da cloroquina, enquanto nos tweets a favor da cloroquina ele foi citado apenas 8 vezes. Há aqui uma clara tentativa de realizar um enquadramento interpretativa da figura do atual presidente do Brasil, caracterizado-o como "irresponsável" (20 menções) e “garoto propaganda” da cloroquina (11 menções).

Nos tweets contra à eficácia da cloroquina, a crítica ao presidente brasileiro está fortemente ligada ao fato de ele ser visto como um "garoto propaganda" da cloroquina (coeficiente de coocorrência entre “desgoverno” e "garoto propaganda da cloroquina" é 0,48), assim como pela “manipulação de informação” sobre os efeitos colaterais da cloroquina, que obteve 16 menções, sendo que ao se relacionar este último código com o código “garoto propaganda” obteve-se o coeficiente de coocorrência de 0,64.

Nos tweets contra a eficácia da cloroquina, enquanto apareceram 11 menções à “ineficácia da cloroquina”, apareceram 20 menções à “manipulação de informação”, mostrando que o ponto central não é apenas afirmar que a cloroquina não é eficaz (apesar de ser um tema importante nos tweets), mas sim mostrar a manipulação de informação realizada por aqueles que querem defender a cloroquina, como também foi verificada na codificação de 06 de julho.

Já no grupo a favor da eficácia da cloroquina no combate da Covid-19, embora haja maior atenção dos discursos na crítica aos opositores, há também uma tentativa de criar uma identidade positiva, isto é, como aqueles que “defendem Bolsonaro” (4 menções) e “busca do bem-estar da população” (16 menções).

É interessante notar os frames de identidade nos tweets, ou seja, a criação do “nós” em oposição ao “eles”, expresso, por exemplo, no coeficiente de coocorrência entre “busca do bem-estar da população” (representa o “nós”) e “corruptos” (que representa o “eles”) que é de 0,42. Já quando comparado "busca do bem-estar da população" (que representa o “nós”) com "apoio ao Bolsonaro" (que também representa o “nós”), o coeficiente é de apenas 0,11. Mostrando, assim que a identidade se forma a partir da criação de uma bipolaridade, se afirma uma característica positiva ao compará-la a uma característica negativa do opositor.

Ao analisar os tipos de influenciadores, foi possível perceber uma correlação com a análise realizada em 06 de julho, vez que a) nos tweets a favor do uso da cloroquina na cura da pandemia foram encontrados 13 ativistas, 10 líderes de opinião e 1 influenciador de conteúdo; b) nos tweets a favor do uso da cloroquina na cura da pandemia foram encontrados 13 líderes de opinião, 09 ativistas e 03 influenciadores de conteúdo.

É possível inferir que na rede a favor da eficácia da cloroquina, assim como na análise de 06 de julho, houve a prevalência de “ativistas”, enquanto na rede dos opositores da eficácia da cloroquina prevaleceu os “líderes de opinião”. O que reforça a percepção de que, quando se trata do número de retweets, o grau de conhecimento do produtor da mensagem geralmente não é um quesito levado em consideração ao se propagar uma mensagem. E, que na rede de defesa da eficácia da cloroquina no combate da Covid-19, os usuários denominados “ativistas” exercem papel importante na manutenção da coesão do grupo e na criação de identidade.


Conclusão

A partir das análises dos grafos e da codificação dos tweets sobre a politização da Covid-19 foi possível perceber a preponderância dos frames de injustiça, que se referem à indignação moral expressa em palavras, apresentando denúncias e culpados e os frames de identidade, marcados por sucessivas tentativas de definir um “nós” contra um “eles” (GAMSON, 1992).

A disputa discursiva encontrada no Twitter tinha por finalidade enquadrar o mundo, tornando acessíveis perspectivas específicas de interpretação da realidade, baseando-se em quadros que, simultaneamente, salientam determinados elementos da realidade e produzem regiões de sombra (MOUILAUD, 2002), orientando a produção de formas simbólicas e sua interpretação, ao procurar estabelecer o grau de importância e o sentido de um fato (SNOW & BENFORD, 1998), capaz, portanto, de influenciar no debate público dentro e fora do mundo digital (agenda-setting).

Mesmo que a criação de enquadramentos – por vezes enganosos – já ocorra há muito tempo nas mídias ditas tradicionais (jornais, revistas, periódicos), existem particularidades no processo dentro das redes sociais, dado os ganhos em amplitude e em eficiência, assim como o advento de um novo modo de gerenciamento da informação, que passa a ser ao mesmo tempo particular e de massa, em um processo de simbiose entre informação e comunicação interpessoal.

Por isso, em comparação com os meios de informação tradicionais, as redes sociais são capazes de criar enquadramentos com maior grau de engajamento, ao ponto de ser o número de compartilhamentos que garantem a legitimidade tanto para o discurso, quanto para o seu emissor.

Estamos, assim, diante de uma espécie de auto-comunicação de massas (CASTELLS, 2011) que continua sendo comunicação de massas porque o seu alcance é potencialmente global, ao mesmo tempo que é pessoal, porque é individualmente produzida, consumida e distribuída. Beneficiando-se da convergência e da flexibilidade permitidas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação e pelas respectivas ferramentas. Daí ser importante entender quem são os sujeitos políticos que emergem destas relações, os chamados influenciadores nas redes sociais, a fim de entender como podem vir a influenciar o processo deliberativo em contexto democrático.

Por outro lado, é preciso se ter em mente que apesar do imenso poder de influência das grandes plataformas digitais e daqueles que podem comprar os dados comportamentais para fins econômicos e políticos, que o poder é um conjunto de relações e não uma "forma" (FOUCAULT, 1999)7, não apresentando efeitos apenas repressivos, mas também produtivos e constitutivos, que sempre estará acompanhado da resistência. 

Assim, onde não existe possibilidade de resistência não há relações de poder, mas um estado de dominação. Portanto, dentro de um contexto democrático, onde há sujeição há também formas de resistência9. De modo que a crítica é o movimento por meio do qual o sujeito se apropria do direito de interrogar o poder dos discursos de verdade (FOUCAULT, 1990)

Daí a importância de um uso crítico e criterioso das redes sociais, entendendo que o espaço digital não se configura como algo descolado do real, com suas características, comunidades e identidades próprias, nem como simples parte do real, e sim como sendo capaz de influenciar a compreensão da própria realidade

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Bibliografia

 DUBOIS, E.; GAFFNEY, D. The multiple facets of influence: identifying political influentials and opinion leaders on Twitter. American Behavioral Scientist, v. 58, n. 10, p. 1260-1277, 2014.

CASTELLS, M. The rise of the network society: The information age: Economy, society, and culture (Vol. 1). Wiley-Blackwell, 2011.  

GAMSON, William. (1992), Talking politics. Cambridge/Nova York/Melbourne, Cambridge University Press.

MOUILLAUD, Maurice. O jornal: da forma ao sentido. 2. ed. Brasília, Editora da UnB, 2002.

FOUCAULT, M. La ética del cuidado de sí como práctica de la libertad. In: ______. Estética, ética e hermenêutica: obras esenciales. Barcelona: Paidós, 1999. v.3. p.393-415.

FOUCAULT, M. Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Société française de philosophie, Vol. 82, nº 2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990 (Conferência proferida em 27 de maio de 1978). Tradução de Gabriela Lafetá Borges e revisão de Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em: http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/critica.pdf.

SOARES, F. B; RECUERO, R. ; ZAGO, G. Influencers in Polarized Political Networks on Twitter. In: Proceedings for the International Conference for Social Media and Society. Copenhagen, Denmark, 2018. p. 1-10

SNOW, David, BENFORD, Robert. Ideology, Frame Resonance, and Participant Mobilization. In: International Social Movement Research. 1988.

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Notas

1- Não significa que as redes sociais devam ser interpretadas como necessariamente uma tecnologia opressiva. É preciso notar que elas abriram novos canais para o diálogo e mobilizações, que desempenharam um importante papel perante Estados pouco abertos ao diálogo, como nos episódios da chamada Primavera Árabe, aprimorando, assim, o debate público e impondo agendas de mais transparência e accountability à máquina pública. O grande problema das redes está na concentração de propriedade e os moldes monopolistas com os quais elas se apossam do fluxo das comunicações digitais em todo o planeta.

2- Para este estudo utilizamos a Modularidade, que consiste em um cálculo que detecta comunidades. Mede o quão bem uma rede se decompõe em comunidades menores e modulares. Um alto índice de modularidade indica estrutura interna sofisticada. Essa estrutura, muitas vezes chamada de estrutura da comunidade, descreve como a rede é compartimentada em sub-rede.

3- Para que a disputa discursiva ocorra, os usuários utilizam-se das affordances1 da ferramenta, para buscar a legitimação de um discurso e a deslegitimação do outro, buscando moldar uma determinada realidade proposta através de estratégias discursivas. A affordanceconsiste nas propriedades reais e percebidas do objeto. Em outras palavras, affordance é o atributo do objeto que permite às pessoas saberem como utilizá-lo, são as possibilidades e limites das interfaces (PREECE; ROGERS; SHARP, 2005)

4- O coeficiente de coocorrência mostra a frequência com que os códigos estão relacionados. É um número entre 0 e 1 e quanto maior ele for mais forte é a relação entre os dois códigos, segundo os padrões do Atlas.ti uma correlação com coeficiente acima de 0,2 é considerada chel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/critica.pdf

5- A ampla referência a situação dos indígenas durante a pandemia se deu pelo fato de que em 02 de julho o Ministério Público Federal em Roraima abriu procedimento para investigar a distribuição de cloroquina às comunidades indígenas e o acesso aos territórios sem a devida consulta prévia aos moradores. https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/07/02/mpf-investiga-distribuicao-de-cloroquina-a-indigenas-e-acesso-as-reservas-sem-autorizacao-dos-povos-em-roraima.ghtml, acesso em 12 de julho de 2020. 

6- É importante salientar o contexto no qual estes tweets foram produzidos, vez que no dia 04 de julho a dupla sertaneja Bruno e Marroni relataram cura pela cloroquina durante uma live, o que foi utilizado como comprovação da eficácia do medicamento. Para mais detalhes ver: https://revistaforum.com.br/coronavirus/marrone-defende-uso-de-cloroquina-em-live-bolsonaro-esta-certo-esse-remedio-e-muito-bom/, acesso em 10 de julho.

8- A clusterização é um processo frequentemente usado na análise exploratória dos Grafos. Refere-se ao processo de classificar os nós ou os links (edges ou ligações) de forma que aqueles com determinados atributos ou propriedades similares fiquem no mesmo "conglomerado". Clusterização, na análise de grafos, é sinônimo de Particionamento.

9- Butler é uma das autoras que se interessou pelo tema, estudando como nos constituímos como sujeitos, a partir da incorporação de normas sociais. Para ela, na ideia de Foucault de que o sujeito é formado em sua sujeição, a partir das relações de poder, está presente o entendimento de que o sujeito carrega o paradoxo da submissão a outros por meio do controle e dependência (sujeição), ao mesmo tempo em que esse assujeitamento permite a construção de uma identidade, pela consciência ou conhecimento de si mesmo. Submeter-se é, portanto, condição primeira de possibilidade da existência. Teorias que veem a democracia também em outros processos, ações e espaços sociais. Para mais detalhes ver: BUTLER, J.The psychic life of power: theories in subjection. California: Stanford University Press, 1997.

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