O mundo em suspensão, milhares de
pessoas reclusas em casa, utilizando mais do que nunca as tecnologias digitais,
tanto no que diz respeito ao trabalho, ao estudo, quanto às horas de lazer.
Este cenário, que chega a se aproximar de uma distopia, é o ambiente ideal para
a ampliação das empresas de tecnologia que lucram com o acúmulo dos dados
digitais.
Mas o que é um dado? Quando falamos
de dados, referimo-nos a um símbolo, uma simples observação sobre algo ou um
valor atribuído a algo – um nome, um tamanho, uma cor, uma característica – que
por si só não possui nenhum sentido. Por serem facilmente organizados e
estruturáveis, eles podem ser armazenados e processados por um computador com
maior facilidade. Estes dados simples, que, em si, parecem inofensivos, quando
relacionados passam a ser dotados de relevância e propósito, produzindo assim
informação. A datificação permite usar as informações de novas maneiras,
possibilitando, por exemplo, análises preditivas e prescritas do comportamento
a partir de dados dispersos e aparentemente irrelevantes.
O processo de extração de valor a
partir dos dados digitais não abandona os velhos preceitos do capitalismo
moderno, como a competitividade, a busca pela maximização do lucro, a
produtividade e o crescimento. Porém, os dados são operacionalizados em um novo
contexto e a partir de novas variáveis, fundamentadas na extração de informação
útil e na predição de comportamentos a partir da vigilância. Dessa forma, os
dados, ou melhor, as informações que se pode extrair a partir da relação entre
eles, se torna mercadoria[2].
A amplitude do capitalismo de
vigilância foi possível graças à promessa de “liberdade” e “opção”, a qual
promoveu uma inserção consentida e mesmo eufórica ao capitalismo informacional.
Neste contexto, os computadores, e ainda mais os smartphones, não só
recebem, produzem e compartilham conteúdo, como registram cada interação e
comportamento do usuário e não só no ambiente online, incluindo também a
própria realidade física, com dados biométricos e metabólicos.
Para ficarmos apenas em algumas
questões: o que falar então dos apps promovidos por vários ministérios
da saúde, que visam auxiliar na contenção da pandemia de Covid-19 e que, para
serem utilizados, pedem informações como acesso à conteúdo de cartão de
memória, gravação de áudio, entre outras autorizações que não parecem
essenciais para alcançar seus objetivos? Ou, ainda, sobre a possibilidade de
triangulação feita através do localizador do celular, que permite saber por
onde o usuário esteve e se, por acaso, entrou em contato com algum infectado
pela Covid-19?
A epidemia que
vivemos hoje colocou com mais força o debate sobre a relação entre cuidado e
controle. Muitos discursos procuraram mostrar a eficiência da China e da Coreia
do Sul no combate à epidemia. É preciso, entretanto, ressaltar que, para
enfrentar o vírus, os asiáticos apostam fortemente na vigilância digital. Ou
seja, a epidemia não tem sido combatida somente pelos virologistas e
epidemiologistas, mas também por especialistas em informática e
macrodados.
Se o
aprofundamento da vigilância pode atenuar o alcance da epidemia, existiria
então um lado bom da vigilância? Há quem defenda que todo tipo de vigilância é
autoritária e não desejável[3],
enquanto outros entendem que a vigilância não pode ser classificada em si como
boa ou ruim, a depender de como é utilizada, para fins de controle ou cuidado[4].
A solução
não é simples, pois seja qual for o uso que se faz da vigilância, como cuidado
ou controle, ainda resta a questão sobre o que é feito com estes dados e até
que ponto eles podem ser protegidos. O mais importante agora é entender o valor
econômico por trás da vigilância e como o discurso político modela o entendimento
a seu respeito. Para tanto, não é a
tecnologia que deve ser discutida, mas o capitalismo de vigilância, entendido
como o
centro de uma nova lógica de
acumulação, que consiste na capacidade adquirida pelo capitalismo de
transformar em mercadoria as informações capturadas através das ações e
comportamentos do usuário, ampliando a capacidade de realizar predição e mesmo
prescrição sobre os comportamentos dos indivíduos. O problema, portanto, não é
de ordem tecnológica, e sim econômica e política.
Ninguém
pode prever com certeza como se comportará a humanidade após o fim da pandemia.Tudo
voltará ao normal? O atual momento é um estado de exceção temporário, no qual
basta aplicar medidas excepcionais para que a vida possa ser a mesma de antes?;
A pandemia desvelará a insustentabilidade da estrutura “neoliberal”, promovendo
uma ruptura em direção à uma sociedade mais justa e consciente?; Ou a crise será o empurrão que faltava para
acelerar processos que já se anunciavam, como a educação à distância movida aos
moldes do capitalismo de vigilância ou o home office, que
transfere custos fixos de estrutura ao trabalhador, além de aprofundar a
exploração do tempo do trabalho?
O futuro é
uma incógnita, rodeada de especulações. O que podemos perceber, de fato, é o
aumento do uso de dispositivos digitais para monitorar o comportamento dos
indivíduos. É certo que as empresas afirmam constantemente que os dados são
anônimos, ou seja, embora se refiram a uma pessoa, não devem permitir a identificação
do sujeito. Por outro lado, a total anonimização de dados pessoais
é extremamente difícil. Com as possibilidades do Big Data,
cruzamento e relacionamento de bancos de dados, novas técnicas permitem a
reversão da anonimização de dados pessoais em diversos casos.
O uso das
tecnologias como forma de solucionar problemas é um argumento recorrente do
chamado Vale do Silício e também da China, mesmo que por outros caminhos.
Segundo este grupo, home office e tecnologias aplicadas à
educação, por exemplo, podem promover uma ruptura na velha ordem social,
ampliando o acesso aos bens básicos. E, esta lógica, segundo seus defensores,
pode ser aplicada em todas as esferas da sociedade. O problema por trás deste
tipo de visão é que restringe a análise à ordem informacional, tecnológica,
financeira, esvaziando o caráter histórico, sociológico e político do problema,
dividindo as sociedades em nichos, de modo que alguns deles se tornam
invisíveis.
A pandemia
vai passar. Resta-nos ficarmos atentos para qual discurso ganhará força neste
contexto e qual a lógica de poder na qual ele se insere.
[2]
Para mais detalhes: Zuboff, S. The Age
of Surveillance Capitalism - the fight for a human future at the new frontier
of power. New
York: Public Affairs. 2019.
[3] Para mais detalhes: Fuchs, C.
(2011) Como podemos definir vigilância? em
MATRIZes, Vol. 5, no 1, 2011, p. 109-136.
[4] Para mais detalhes: Lyon, D. Cultura da vigilância: envolvimento,
exposição e ética na modernidade digital, em Tecnopolíticas da Vigilância. São
Paulo: Ed. Boitempo, 2018.
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