Em apenas dez anos as empresas ligadas à tecnologia
digital hegemonizaram o ápice do mercado financeiro, indicando enormes
concentrações de capital e de expectativa de acumulação nos setores da economia
centrados na informação[1].
As duas gigantes do setor, Facebook e Google operam
principalmente por meio do leilão de blocos de audiência segmentada, ou seja,
ofertam a expectativa de que o conteúdo publicitário terá a atenção de
indivíduos com as características exatamente desejadas pelos anunciantes, e que
esta expectativa poderá ser comprovada a partir das métricas de interação dos
usuários. Tanto a definição dos segmentos, quanto a eficiência do alcance da
publicidade prometida pelo Google e Facebook são baseadas na extração de dados
dos usuários e seu processamento pelos respectivos algoritmos. Trata-se de uma
realidade antecipada pelo conceito de “divíduo”, no qual os seres humanos são
tratados pelo poder como segmentações.
A função econômica da apropriação dos metadados
produzidos pelos usuários na sua navegação e interação é considerada por Zuboff
(2018) o centro de uma nova lógica de acumulação por ela denominada capitalismo de vigilância. Zuboff (2018)
destaca que a característica fundamental das relações mediadas digitalmente é a
de que as máquinas digitais não só automatizam processos como, imediatamente,
de forma combinada, produzem informações sobre as atividades em que se
envolvem.
Os computadores e ainda mais os smartphones não só
recebem, produzem e compartilham conteúdo, como registram cada interação e
comportamento do seu usuário, e não só no ambiente online, mas na própria
realidade física, incluindo atualmente cada vez mais dados biométricos e
metabólicos.
O paradigma das redes com governança global aberta
favoreceu a produção de um ecossistema de abundância de informação, como o
conteúdo gerado por e para usuários. Contudo, o desenvolvimento das grandes
plataformas criptografadas, acessíveis apenas por login, os chamados jardins
murados (Silveira, 20015), conduziram ao controle técnico sobre o acesso às
informações que, potencialmente, poderiam ser de acesso universal. O Facebook é
um exemplo de “jardim murado”, vez que, para acessar o conteúdo que nele foi inserido
é preciso ser aceito na sua plataforma, concordar com seus termos de utilização
e abrir um perfil, tornando-se um virtual produtor de conteúdo.
Como Zuboff (2018) aponta, a vigilância se traduz na
extração dos dados produzidos involuntariamente pelos usuários, seus rastros
digitais, que ao serem analisados permitirão definir padrões de conhecimento
sobre cada indivíduo e sobre diferentes amostras de populações, agrupadas em
função dos interesses dos clientes das plataformas de vigilância analisadas
pela autora, o Google e o Facebook.
Zuboff (2018) propõe que a sociedade passa por uma
espécie de metamorfose fictícia, a transformação da 'realidade' em
'comportamento', o que permite sua apreensão subjugada à mercantilização.
"Os dados sobre comportamento dos
corpos, das mentes e das coisas configuram uma compilação universal em tempo
real de objetos inteligentes no interior de um domínio global infinito de
coisas conectadas" (ZUBOFF, 2018, p.58), dando origem a um organismo
global inteligente que Zuboff (2018) denomina Big Other, cujo controle está nas mãos das corporações que operam
no meio digital.
Zuboff (2019) descreve um caso que pode servir de
exemplo dos processos de extração e produção de dados, orientando-se por ações
de lazer, pela mediação de fluxos de desejo. Em 2016, o jogo Pokemon Go se
tornou uma febre, alcançando vinte e um milhões de usuários em apenas uma
semana. Sua proprietária, a Nintendo, ganhou U$$ 7,5 bilhões em valor de
mercado nesta mesma semana. Por meio da sincronização da câmera e do GPS dos
smartphones, os jogadores deveriam circular por espaços públicos e privados
buscando capturar pokémons, personagens de desenho animado, que apareciam na
tela dos dispositivos projetados sobre os ambientes filmados.
O aplicativo requer autorização e acesso ininterrupto
a localização e câmera do usuário, inclusive quando não está aberto (SILVEIRA,
2017), e incorpora através da lógica do jogo, os usuários na tarefa necessária
ao objetivo do capitalista de dados, em uma estratégia conhecida no mundo
corporativo como gamification. A
descrição da patente da tecnologia de Pokémon Go deixa claro: "Um dos objetivos do jogo que pode ser
vinculado diretamente à atividade de coleta de dados envolve uma tarefa que
requer a obtenção de informações sobre o mundo real e o fornecimento das mesmas
como condição para a conclusão do jogo" (SILVEIRA, 2017, p.56).
O principal executivo responsável pelo jogo Pokemon
Go, John Hanke, havia anteriormente coordenado a divisão geográfica do Google
Maps, quando esta foi responsável pelo maior escândalo de privacidade na
Internet até então: a varredura de dados de tráfico de redes domésticas de
wi-fi por meio dos carros do Google (Zuboff, 2019).
Zuboff (2019) descreve em maiores detalhes como
enquanto os carros da empresa cartografavam, por meio de câmeras, as ruas do
mundo para o serviço 'Street View', seus sensores coletavam os dados não
criptografados disponíveis em computadores conectados aos wifi, como senhas,
mensagens de e-mail, prontuários médicos, informações financeiras, além de
arquivos de áudio e vídeo dos usuários .
O modus operandi do Google, segundo a autora, é a
incursão em territórios não protegidos até que alguma resistência seja encontrada.
O Google não solicita permissões enquanto não for obrigado a isso, e "sua tática é esgotar seus adversários no
tribunal ou eventualmente concordar em pagar multas que representam um
investimento negligenciável para um retorno significativo" (Zuboff,
2018, p.30).
Deste modo, certas corporações conseguem deter os
processos de reconstrução do commons
digital (Zuboff), do bem comum, não só através da criptografia e dos
direitos intelectuais, mas ao construir uma profunda assimetria informacional
na sociedade, em relação à propriedade e acessos dos metadados, dos rastros
digitais, e das informações e saberes produzidos a partir destes.
A assimetria informacional construída pelas
corporações no capitalismo de vigilância se configura, portanto, por uma
assimetria, em primeiro lugar, do exercício do direito (Zuboff, 2018). A
opacidade dos algoritmos e dos dados, monopolizados por meio dos direitos
intelectuais corporativos, convive com a transparência de usuários e da
sociedade garantida pela incorporação da violação sistemática dos direitos dos
demais, presente no modelo de negócios das corporações.
Referências:
JOHNSTON, S. Largest companies 2008 vs. 2018, a lot
has changed. Disponível
em: https://milfordasset.com/insights/largest-companies-2008-vs-2018-lot-changed
. Acesso em 20. jan. 2019.
SILVEIRA,
S. A. Tudo sobre tod@s: redes digitais, privacidade e venda de dados pessoais.
São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.
STATISTA. The 100 largest companies in the world by
market value in 2019. Disponível em:
<https://www.statista.com/statistics/263264/top-companies-in-the-world-by-market>
Acesso em 12. jan. 2019.
ZUBOFF,
S. Big Other: Capitalismo de Vigilância e perspectivas para uma civilização da
informação. In: BRUNO, F. et al.(orgs.) Tecnopolíticas da Vigilância. São
Paulo: Boitempo, 2018.
______________ The Age of Surveillance Capitalism -
the fight for a human future at the new frontier of power, New York: Public
Affairs. 2019
[1]
Em 2019, as maiores companhias em valor de mercado global eram: Apple, fundada
em 1976 e valendo U$$ 961,3 bilhões; Microsoft, que surgiu em 1975 e valendo
946,5 bilhões; Amazon, criada em 1994 e com U$$ 916,1 bilhões; Alphabet com
863,2 bilhões; e a rede social criada em 2004, Facebook, ocupando o sexto
lugar, com 512 bilhões (STATISTA, 2018a). Ainda em 2008, as cinco maiores
empresas em valor de mercado eram: Exxon, fundada em 1870; General Eletric,
fundada em 1892; Microsoft, fundada em 1975; AT&T, fundada em 1885 e
Proctor & Gamble, fundada em 1837 (JOHNSTON, 2018).
Adorei o texto! Me despertou o interesse em ler Zuboff!
ResponderExcluirQue bom! Fico muito feliz em saber. Depois me conta como foi leitura. Um grande abraço.
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