No meu texto anterior intitulado “Bolsonarismo como
movimento fascista? Parte 1 – O papel do discurso ideológico” analisei as
possíveis relações entre o movimento denominado de bolsonarismo e o movimento
fascista, demonstrando que o discurso ideológico que faz parte do movimento
fascista também caracteriza o bolsonarismo. Em consonância com a análise anterior, neste
texto, verificarei como a recusa do debate e da crítica, presentes no movimento
fascista, se apresentam também no contexto do bolsonarismo.
Antes de adentrar no bolsonarismo, penso ser
pertinente verificar a relação entre a deliberação e a democracia, a fim de
explicitar o risco que a recusa do debate traz para o contexto democrático. É
possível encontrar no mínimo duas formas de relacionar deliberação e
democracia: de um lado há aqueles que entendem a deliberação como a decisão em
si, a escolha que um determinado indivíduo faz quando toma uma decisão (Schumpeter,
1961)[1]. Nesse contexto, a
legitimidade reside na liberdade que o indivíduo tem para tomar sua decisão sem
ser influenciado por ninguém ou por nenhuma instituição.
Por outro lado, amparado na tradição aristotélica, há
autores para os quais a legitimidade está na liberdade que os indivíduos têm de
debater suas ideias (Habermas, 2004)[2] O paradigma democrático
deliberativo aparece como uma alternativa à visão liberal-pluralista
hegemônica, enfatizando os aspectos discursivos do processo político, com apelo
à recuperação da dimensão participativa da política. O confronto e o debate
entre os vários pontos de vista acerca de uma proposta, ao invés de
prejudicarem, são essenciais para que os indivíduos selecionem as informações
de que dispõem, reduzindo seus níveis de incerteza e modelando suas
preferências. Neste sentido, o debate, além de incrementar e melhorar a
qualidade da informação disponível, constitui-se em processo político-pedagógico
para os tomadores de decisão.
A liberdade, assim, consiste na
possibilidade de se chegar a uma decisão por meio do debate e da comparação
entre várias soluções. A legitimidade das decisões residiria no próprio
processo de discussão e debate que as forma. A deliberação num contexto democrático
não se fundamenta, portanto, no discurso único e no amordaçamento das vozes
discordantes, mas sim no confronto sadio entre distintos pontos de vistas que
dialogam.
No Brasil atual presenciamos diversos exemplos de
intolerância com os discursos discordantes, que são taxados de errôneos e manipuladores
sem que seja apresentado argumentos para se contrapor. Impera a lógica do
“condeno tudo que se opõe ao meu ponto de vista”, sem argumentos, sem
explicações e muitas vezes sem fatos que sustentem a posição. Em alguns casos
tenta-se inibir ou mesmo calar as notícias que não agradam, como ocorreu com a
jornalistas Vera Magalhães que, após publicar que o atual presidente do Brasil
havia compartilhado no WhatsApp um vídeo de apoio ao ato que ocorrerá contra o Congresso,
foi alvo de agressões verbais de bolsonaristas, com insultos pessoais que em
nada se aproximam de um debate de ideias. Na verdade, o fato de um presidente da
república apoiar publicamente um ato contra o Congresso, já demostra que o
espaço do debate democrático está sob risco de se afundar na lama do
autoritarismo.
A defesa da visão
unilateral e a recusa, ou mesmo a demonização do debate de ideias encontra
terreno fértil nos meios digitais, principalmente nas redes sociais, onde a
propagação da mensagem depende da ação da audiência, nas quais o desejo leva
vantagem sobre o pensamento. Deste modo, o sensacional predomina sobre o
factual, assim como o sentimento ou sentimentalismo predomina sobre o
argumento.
Na era das redes sociais, o registro da percepção e do
sensível, que passam pelo desejo, pelo sentimental proporcionam conforto
psíquico, assim o indivíduo se encontra encapsulado em multidões que o espelham
e o reafirmam reiteradamente. Estas são as “bolhas” das redes sociais, cujo
traço definidor é a impermeabilidade ao dissenso: as opiniões contrarias são
logo excluídas ou nem encontram lugar para se expressar.
Aqui, entra a questão do enquadramento interpretativo
ou frame, entendido como um conjunto de mensagens ou ações significativas que
adquirem sentido na situação partilhada pelos interlocutores, tendo como foco
tanto o envolvimento subjetivo do ator em determinada situações quanto a
organização da sociedade que condicionam a ação subjetiva (Goffman)[3]. Em outras palavras, ao
inserir-se em uma dada situação social, o indivíduo é mobilizado a defini-la a
partir de um enquadramento interpretativo, o qual orienta o comportamento a ser
adotado, sendo que é a partir desta moldura que o acontecimento ganha sentido.
A importância do frame/enquadramento interpretativo
consiste em sua capacidade de desnaturalizar os processos, realizando um
processo de politização, procedimento essencial para que os acontecimentos
passem a ser vistos como questões sociais. O problema aparece quando o frame
procura desinformar, moldando crenças que vão conduzir a escolhas baseadas em ideias
que não condizem com a realidade.
Neste contexto, os vídeos no Youtube cumprem o papel
da educação política-ideológica e de produção de conteúdo, o Twitter e Facebook
são fundamentais na disputa de narrativas e pautas, assim como para o aumento
da rede. Por sua vez, o WhatsApp funciona na organização dos apoiadores e na
distribuição efetiva das mensagens, pautadas muitas vezes na manipulação de
fatos e invenção de opiniões adversárias. Assim, o movimento bolsonarista, seguindo
a lógica do movimento fascista, mobiliza a massa de apoiadores sob a ótica do
discurso único e a segregação das vozes e posturas discordantes.
[1] SCHUMPETER, J. A. Capitalism, socialism and democracy. New York:
Harper and Brothers, 1961
[2] HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos
de teoria política. Trad. George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo
Mota. 2ªed. São Paulo: Humanística, 2004.
[3] SILVA, Marcelo Kunrath; COTANDA, Fernando Coutinho and PEREIRA, Matheus Mazzilli. Interpretação e ação coletiva: o
“enquadramento interpretativo” no estudo de movimentos sociais. Rev. Sociol. Polit. [online]. 2017,
vol.25, n.61, pp.143-164. ISSN 1678-9873. https://doi.org/10.1590/1678-987317256102.
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