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Sociologia dos Direitos Humanos - Kate Nash


Introdução
Conforme a concepção mais aceita, os direitos humanos situam-se diante da categoria mais ampla dos direitos fundamentais. São aqueles direitos primários ou substanciais concernentes a todos os seres humanos indistintamente, proclamados e tutelados pelas declarações, convenções e estatutos internacionais.
A sociologia começou, recentemente, a voltar sua atenção para o tema dos direitos humanos, que, até então, era monopólio quase exclusivo da teoria geral do direito, da filosofia do direito e do direito internacional.
Kate Nash, no livro “The Political Sociology of the Human Right”, procura demonstrar o valor da sociologia na análise sobre os direitos humanos, dada sua capacidade de mapear os paradoxos intrínsecos a este campo dos direitos, além de evitar simplificações que ignoram a complexidade das políticas globais. Neste trabalho, realizaremos uma pequena exposição sobre o livro de Kate Nash, tendo como foco dois pontos centrais, a saber, o modo pelo qual a autora entende a sociologia política dos direitos humanos e a política cultural dos direitos humanos.

Sociologia Política dos direitos Humanos e Política Cultural dos direitos humanos

Na linguagem sociológica, os direitos humanos podem ser descritos como expectativas reais de comportamento efetivadas no contexto de um papel social e que podem contar com o consenso social. O catálogo dos direitos humanos, inscrito nas constituições e nas convenções internacionais, simboliza expectativas de comportamento institucionalizadas e efetiváveis em situações concretas.
Os direitos humanos são ainda vistos como menos concretos, menos vinculados ao Estado do que os direitos de cidadania, de onde surge questionamentos sobre a universalidade, a moralidade, a validade de tais direitos, indagações que a sociologia possui ferramentas que auxiliam na busca de respostas. A análise dos direitos humanos a partir de uma perspectiva sociológica, tendo como foco questionamentos sobre poder e política, divisão social e conflitos, diferentes interpretações sobre os direitos humanos e as condições para a ação social, permite novas formas de interpretar a prática dos direitos humanos para além da lei positiva e da filosofia interpretativa.
É neste contexto que se insere a análise de Kate Nash sobre os direitos humanos, tendo como foco o estudo sobre o alcance dos atores envolvidos no processo de reinvindicações por direitos, os tipos de ações nas quais eles se apoiam e as organizações através das quais as reinvindicações são alcançadas. Deste modo, a autora propõe uma perspectiva de estudo dos direitos humanos a partir da estrutura na qual ele se insere, o que permite vislumbrar as dificuldades e contradições por trás dos direitos humanos, evitando explicações simplistas.
O estudo sobre a construção social dos direitos humanos permite, segundo Nash, entender como os significados, dentro do campo histórico e geográfico, foram construídos e contestados, assim como analisar o modo pelo qual a autoridade é criada ou conquistada, de modo a definir o que os direitos humanos são e o que deveriam ser, e quais direitos e obrigações estão em jogo em cada contexto.
A sociologia dos direitos humanos envolve, portanto, o estudo dos direitos humanos como prática, entendendo que os direitos humanos são sociais enquanto são construídos e mantidos pela prática, que permite orientar as intenções e ações de um indivíduo em relação aos outros. Os direitos humanos também são sociais pelo fato de, embora serem reivindicados por indivíduos, apenas no contexto coletivo e institucional que as reinvindicações se tornem efetivas.
Neste contexto, os direitos humanos são entendidos por Nash como uma construção social e cultural, partindo da ideia de que (i) a realidade é ‘socialmente construída’; (ii) as estruturas são definidas, principalmente, por ideias compartilhadas, e não apenas por forças materiais; e (iii) as identidades e os interesses dos atores são construídos por aquelas ideias compartilhadas. Isso significa que ideias e normas têm um papel fundamental tanto na constituição da realidade e dos agentes, quanto na definição de identidades e interesses. Os atores estão imersos numa estrutura social que os constitui e que, por sua vez, é constituída, também, por esses atores no processo de interação.
Afirmar que algo é uma construção social significa que não deve ser entendido como algo inevitável ou natural. Neste sentido, os direitos humanos são contingentes, históricos, ao mesmo tempo que podem ser utilizados para regular o que se faz e o que se pensa. O objetivo da sociologia ao estudar a construção social dos direitos humanos é trazer para o primeiro plano o conceito de social, que não é tão explorado em outros enfoques.
Como as reinvindicações de direitos humanos, frequentemente, envolvem alterações no modo de operar das elites, exige uma reordenação do que se considera como normal, ou como socialmente aceitável, alterando, assim, a estrutura social. Segundo Nash, a mudança no comportamento social é impossível sem a presença da estrutura organizacional, para a qual as reinvindicações são endereçadas e a partir das quais as alterações são formalizadas. Deste modo, os direitos humanos não devem ser entendidos apenas a partir de um viés moral, mas também de uma perspectiva política.
Nash diferenciando os termos “politics” e “the political”, ou citando Monica Krauser (p.05), distingue política com P maiúsculo, que se refere aos tomadores de decisão, inseridos em organizações governamentais oficiais, como os burocratas, os administradores e os diplomatas, e política com p minúsculo, que se refere ao campo social. Os direitos humanos são políticos nos dois sentidos apresentado por Krauser, pois são reinvindicações por justiça que busca rearranjar, formalmente, o que é aceito como normal a partir das organizações (P) e, assim regular o modo de vida, através de políticas públicas (p).
Para analisar a sociologia política dos direitos humanos, Nash explora o conceito de estrutura e de autoridade, o primeiro entendido como sequência de enquadramentos que delineiam o que deve ser feito e o que deve ser pensado, a partir do uso da repetição. Neste sentido, a estrutura é mais do que uma ideia, pois organiza recursos morais e materiais. Já o conceito de autoridade é entendido como a habilidade de persuadir a pessoa a pensar e agir de certa maneira. A autoridade tem como suporte o treinamento profissional, o credenciamento.
Em resposta à questão sobre se os direitos humanos seriam capazes de alterar as estruturas, Nash afirma que dado que as estruturas são construções, reproduzidas por interpretações em contextos específicos, elas estariam, em teoria, abertas tanto para alterações graduais, que ocorrem no cotidiano, quanto para transformações radicais causadas pela ação coletiva. Entretanto, a autora ressalta que é preciso analisar a possibilidade de efetivação da mudança no campo da prática e, não apenas no campo teórico, estudo que perpassa necessariamente por uma visão sociológica, que permite pensar sobre o alicerce, argumentos e evidências através das quais a mudança é requerida.
No que diz respeito ao conceito de autoridade, Nash ressalta que uma das problemáticas envolvidas neste contexto, consiste na existência de diferentes formas de autoridade no interior do campo dos direitos humanos, portanto, o tipo de ação que deve ser seguida, está sempre em debate. Quem tem condições de reivindicar a autoridade para definir os direitos humanos e como este processo se constrói, pertence ao campo de análise da política cultural, entendendo cultura como uma forma de nomear a complexa corrente de significados que perpassa a vida em sociedade, sempre aberta a interpretação.
A cultura política dos direitos humanos envolve os desafios de trazer novas perspectivas e releituras sobre o que é aceito como senso comum, sobre o que se aceita como verdade, de modo a incluir aqueles que são marginalizados. Neste sentido, o objetivo da política cultural dos direitos humanos é trazer um debate moral, de modo a alterar pensamentos e ações, no caminho do entendimento do outro como um ser humano, sem discriminação.
A política cultural dos direitos humanos se insere, portanto, dentro do campo da política com p minúsculo, envolvendo a distinção entre incluídos e excluídos, além da busca por modos de ação que impeçam que o outro seja violentado ou apartado dos bens necessários para a manutenção da vida, para tanto, é preciso que ocorra uma alteração sobre o que é aceito como normal, o que só pode ocorrer se as pessoas forem retiradas da zona de conforto a partir de imagens e fatos que a façam repensar sobre a organização social. Neste contexto, a mídia ocupa um papel crucial.
O campo da política cultural dos direitos humanos leva em consideração também os tomadores de decisão, como os legisladores, administradores (o que é considerado política com P maiúsculo), já que a política cultural dos direitos humanos não se restringe ao estudo sobre os excluídos, a partir de um viés apenas social, mas também a partir da perspectiva das políticas públicas.
A partir da ideia do direito humano como construção, Nash cita também o papel da antropologia na análise dos direitos humanos, a partir do conceito de vernacularização de Sally Engle Merry. A vernacularização é entendida por Merry, como um processo de enquadramento das doutrinas de direitos humanos nos termos locais, adaptando ideias de um determinado contexto para outros, como uma forma de transformação de um direito global em prática local, ou seja, as histórias locais são emolduradas dentro de uma linguagem ao mesmo tempo local e internacional dos direitos humanos. A autora procura analisar como os conceitos de violência de gênero são mobilizados e reconceitualizados através dos chamados intermediários, entendidos como aqueles que traduzem as ideias globais em situações locais e retraduzem as ideias locais em uma estrutura global. Dessa forma, as ideias são construídas a partir de um diálogo e adaptação ao invés de imposição.
Nash se baseia na teoria de Merry para pensar os direitos humanos como uma linguagem extraída de formas universais e adaptadas a comunidades locais, tornando-as nativas. Dessa forma, os direitos humanos são refeitos no vernacular, ou seja, na vernacularização as ideias e práticas de um grupo, são apresentadas a um outro, adaptando-as, remoldurando-as de forma criativa de acordo com os seus interesses.
Neste contexto, a sociologia tem muito a contribuir aos estudos sobre os direitos humanos, a partir de uma perspectiva política e cultural, ou seja, tanto a partir da concepção de que os direitos humanos são construções inseridas dentro do campo da política cultural, impactando o contexto social, assim como as estruturas que fundamentam as injustiças (política cultural dos direitos humanos), quanto na análise das formas de organização a partir das quais as demandas por direitos humanos são realizadas (sociologia política dos direitos humanos).

Conclusão
Para Nash a análise dos direitos humanos perpassa tanto as estruturas sociais quanto as organizações formais, nas quais o conceito de estrutura e autoridade ocupam posições centrais. Neste sentido, os desafios contemporâneos dos direitos humanos devem ser analisados para além de uma interpretação meramente moral, considerando as práticas culturais, a estrutura social e a organização institucional. E, neste contexto, as possibilidades e as limitações dos direitos humanos funcionariam como um modo, através do qual, as injustiças contemporâneas do capitalismo seriam postas em desafio.

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