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Big data e eleições: o voto como mercadoria


O ciberespaço, locus do novo nomadismo, não representa um território geográfico, mas um espaço invisível, composto pelos conhecimentos, saberes e fluxos de dados e informações.  Entendido como um espaço dinâmico, vivo, que se inventa ao mesmo tempo que produz o seu mundo (Levy, 1997), o ciberespaço rompe com fronteiras nacionais e redimensiona as questões sociais, econômicas e políticas, à medida que modifica a relação tempo/espaço, possibilitando um maior e mais eficiente gerenciamento de dados. Neste contexto, o ciberespaço se configura como um novo campo de disputas políticas, voltado a uma lógica capitalista, na qual o voto se tornou mercadoria.
Em um mundo cada vez mais conectado, no qual as redes sociais e os dispositivos móveis avançam e conquistam mais espaço, tornando-se parte importante da sociedade (Recuero, 2008), os indivíduos compartilham os seus dados publicamente no universo online e, de forma geralmente consentida, costumam abrir mão de parte da sua privacidade. Surge, dessa forma, uma nuvem de dados on-line repleta de vestígios digitais que podem ser rastreados, medidos, quantificados, analisados e mensurados, o que se denomina big data (Boyd, 2013). A organização e a armazenagem de todo o conjunto de dados se estruturam em um formato capaz de serem aproveitados em termos políticos, apontando, portanto, um novo caminho para o marketing político e, mesmo, para a estrutura democrática.
Neste contexto, emerge o termo economia política da vigilância (Zuboff, 2015), entendida como a estrutura conformada em torno das novas plataformas digitais e sua forma de geração de valor. Os dados dos usuários funcionariam como a principal fonte de valor, angariados a partir do uso dos algoritmos. O'Neil (2016) afirma que estaríamos vivendo a idade dos algoritmos e que isso ameaçaria a própria democracia, vez que as decisões seriam delegadas a modelos matemáticos de sistemas, que nem sempre são elaboradas a partir de critérios de justiça e igualdade, nem tampouco são regulamentados. O campo de surveillance studies é talvez o que mais tem se debruçado sobre o assunto, tendo como referência as obras de David Lyon (2013; 2015).
Embora o conceito de política da vigilância esteja vinculado, especificamente, ao modelo de negócio do Google, sobre a necessidade de predição do comportamento humano na relação entre estratificação e análise de dados, através do mapeamento constante e sistemático dos usuários, é possível ampliar a análise de Shoshana Zuboff para o campo político, a partir da noção de capitalismo informacional. Segundo Zuboff, estabeleceu-se um novo poder que determina um novo contrato social e um novo estado de direito transnacional. Todas as ações dos cidadãos estariam sendo vigiadas, com vistas a geração de valor, ao mesmo tempo em que os Estados nacionais estariam numa fraca posição em pensar limites ou regras para esses novos modelos de negócio.
Neste cenário, o eleitor torna-se uma mercadoria a ser codificada e negociada a partir da capacidade de intermediação, segmentação e predição dos modelos matemáticos das redes sociais. Os dados coletados no ciberespaço, tornam-se moeda valiosa para o planejamento e execução de campanhas eleitorais, ou mesmo para disseminação de determinadas ideias a fim de promover um projeto político.
 Antigamente, as estratégias das campanhas eleitorais, na busca por traçar um perfil do eleitor, se apoiavam, fundamentalmente, nas pesquisas eleitorais e em dados de eleições passadas, seja pelos altos custos de se organizar um banco de dados confiável, seja pela limitação tecnológica. (Nickerson; Roger, 2014). Com a diminuição do custo de seleção, armazenamento, gerenciamento e análise de dados, os agentes das campanhas eleitorais passaram a reunir um enorme conjunto de dados de eleitores, além de contratar empresas de análise de dados para criar modelos capazes de prever o comportamento e os anseios dos cidadãos.
As campanhas nas eleições presidenciais norte-americanas e do Brexit na Inglaterra são bons exemplos para reflexão sobre a conexão das influências das redes sociais na política, onde estão em jogo novas formas de influência e convencimento do voto.
Tanto a campanha eleitoral de Trump de 2016, quanto o referendo na Inglaterra, que decidiu sobre a saída daquele país da União Europeia, utilizaram o fluxo de dados dos usuários de redes sociais, como o Facebook, como parâmetro para a construção das campanhas políticas.  Ambos os casos contaram com a mesma assessoria para a disseminação da propaganda nas redes sociais: a Cambridge Analytica, que entre seus principais acionistas está Robert Mercer, bilionário americano que apoia causas conservadoras e oferece suporte financeiro ao Partido Republicano.
A Cambridge Analytica tem uma extensa lista de clientes do mundo político e faz parte de um conglomerado denominado Strategic Communication Laboratories. Sua grande inovação seria a segmentação do público através de aferições psicométricas, que permitiria a mensuração de traços psicológicos, através da análise de grandes quantidades de dados obtidos pelas redes sociais.
A psicometria é um ramo da psicologia bastante consolidado, que se desenvolveu principalmente na década de 80, com o objetivo de mapear traços psicológicos através de testes. O diferencial da Cambridge Analytica consistia na capacidade de combinar a massa de dados coletadas, através das redes sociais, para determinar que tipo de personalidade as pessoas revelavam com seus likes e shares. A metodologia utilizada pela Cambridge Analytica teria sido construída a partir de uma experimentação do pesquisador Michal Kosinski, o qual criou um aplicativo chamado MyPersonality para fazer coletas de dados voluntária no Facebook.
Em 2016, a Cambridge Analytica foi acusada de ter obtido informações pessoais sobre aproximadamente 87 milhões de perfis sem autorização: centenas de milhares de usuários foram pagos para fazer um teste de personalidade e aceitaram que seus dados fossem coletados para fins acadêmicos, entretanto, o aplicativo desenvolvido por Aleksandr Kogan, chamado thisisyourdigitallife, colheu informações sobre os amigos daqueles que fizeram o teste, levando à formação de um banco de dados de dezenas de milhões de indivíduos. Os dados foram usados nas campanhas para a eleição de Donald Trump nos EUA e para o referendo sobre o Brexit no Reino Unido.
A coleta de dados, sem autorização, em escala tão ampla, levanta a questão sobre a garantia das liberdades individuais (Morozov, 2011; 2014; Hindman, 2008) e sobre a privacidade (Lemos, 2010), assim como as efetivas possibilidades de controle sobre o acesso aos dados dos usuários, temas essenciais para se pensar a democracia em tempos de ciberespaço (Castells, 2003; Coleman; 2001; Levy, 2003; Shirky, 2012).
Para André Lemos (2010), a ciberdemocracia deve ser compreendida como a possibilidade de governança mundial, de instauração de um Estado transparente, no qual o uso das tecnologias de informação e de comunicação possibilitaria a ampliação da participação dos cidadãos, a partir dos fóruns de deliberação. No entanto, a ausência de regulamentação do ciberespaço e o uso indiscriminado de dados, sem autorização, para fins eleitorais, conduz ao que podemos chamar de “coronelismo digital”, a partir de uma analogia com o conceito de “coronelismo tecnológico, cunhado por pesquisadores da área de comunicação social (Stadnik, 1991; Lima, 2005). O termo coronelismo não deve, neste contexto, ser entendido como o coronelismo de enxada – forma rural de mandonismo estudada, por exemplo, por Leal (1997), mas como uma ressignificação, mais próxima do conceito de autoritarismo (Arendt, 1979), portanto, algo que se afasta das bases fundamentais da democracia.
A ausência completa de leis que especifiquem o uso da internet pode favorecer a lógica do mercado. Não sendo possível a garantia da liberdade ou da privacidade, direitos essenciais em um processo democrático, sem que haja alguma forma de regulamentação (Wolton, 2003; Galloway, 2009), a qual não deve ser entendida como censura, mas como garantia dos direitos fundamentais, em uma conjuntura democrática.
No entanto, o debate em torno da regulamentação está longe de ser unânime: os que são contrários à regulamentação afirmam que regulamentar significaria criar mecanismos de controle sobre os usuários da rede, sendo a auto-regulamentação e a ausência do Estado no controle do ciberespaço, pontos essenciais para a garantia dos direitos individuais (Lessig, 1999). Do outro lado do debate, estão os que apontam a necessidade de pensarmos em um tipo de regulamentação capaz de envolver a sociedade civil e garantir que a arquitetura da rede seja baseada na liberdade de expressão, comunicação e conexão dos indivíduos e não controlada pela lógica de mercado e os desígnios do capital financeiro (Wolton, 2003; Galloway, 2009; Runciman, 2013).
O debate sobre a regulamentação do ciberespaço, fortalecido pelo caso da Cambridge Analytica, demonstra a necessidade de se refletir sobre a exploração do big data nas campanhas eleitorais e os possíveis impactos provocados na conjuntura democrática.

Referências
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: totalitarismo, o paroxismo do poder. Rio de Janeiro: Ed. Documentário, 1979;

BOYD, Danah; CRAWFORD, Kate. Six Provocations for Big Data. Social Science Research Network. Working Paper Series, 2011. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2013.
CASTELLS, M. A galáxia da internet:​ reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003
CASTELLS, M. A sociedade em rede:​ A era da informação – economia, sociedade e cultura. 10ª ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007.
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GALLOWAY, Alexander. Rede é regulação e nada mais. Entrevista com Alexander Galloway. Disponível em: http://culturadigital.br/blog/2009/10/30/entrevista-com-alexander-galloway/. Acesso em: 7 mar. 2018. 2009.
HINDMAN, M. The Myth of Digital Democracy. ​Princeton University Press, 2008.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto (O município e o regime
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