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Liberdade em John Stuart Mill

Resenha: MILL, John Stuart. A Liberdade. Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


O livro intitulado A Liberdade. Utilitarismo, apresenta duas obras do filósofo britânico John Stuart Mill (1806- 1873), esta resenha se deterá na análise a obra Sobre a Liberdade, na qual o autor propõe uma análise do conceito de liberdade a partir do estudo dos limites do poder que pode ser, legitimamente, exercido pela sociedade e Estado sobre o indivíduo.
O sentido que Stuart Mill emprega ao conceito de liberdade difere do legado pela Grécia. Entre os gregos, o cidadão é livre enquanto participa da vida de sua cidade: a liberdade grega é liberdade política. Esse conceito, porém, não satisfaz o anseio moderno e contemporâneo pela liberdade. Benjamin Constant (CONSTANT, 1975) com maestria apresenta a distinção entre a liberdade na Grécia antiga e a liberdade dos modernos. Para os antigos, a liberdade consistia em exercer de modo coletivo e direto a soberania: deliberavam em praça pública sobre guerra e paz. Todavia, admitiam como compatível com essa liberdade a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo.
Para os modernos, o indivíduo é independente em sua vida privada, delineando um limite à soberania do Estado. As origens da liberdade dos modernos são encontradas, por exemplo, no Cristianismo, ao conceber o ser humano individualmente, como sendo o único responsável por seus atos e por eles devendo ser julgado. Não apenas a teologia cristã, mas especialmente as teorias filosóficas do século XVIII contribuíram para a afirmação histórica da liberdade individual como direito do homem. A partir dessa época, muitos foram os pensadores que se dedicaram à reflexão acerca da liberdade individual, fazendo-o sob diferentes perspectivas.
No campo da filosofia política, especial destaque recebe o filósofo britânico John Stuart Mill, ao conceber que o fundamento de legitimação do governo não reside na teoria dos direitos naturais ou do contrato social, vez que as formas de governo devem ser avaliadas de acordo com a capacidade que têm de permitir que cada pessoa desenvolva suas próprias capacidades, em busca de uma maior felicidade. A esse critério de julgamento ele nomeia “utilidade”.
John Stuart Mill está mergulhado numa doutrina de pensamento denominado Utilitarismo. A forte influência do seu pai, James Mill e do filósofo Jeremy Bentham, que orientavam o grupo da filosofia utilitarista à época, foram os grandes responsáveis por este direcionamento nos posicionamentos do autor.
Os utilitaristas clássicos acreditavam no “princípio da maior felicidade” – ou utilidade – pregavam que o objetivo último das instituições políticas deveria ser a geração da maior quantidade de felicidade ao maior número de pessoas possíveis. Daí surge um problema político e social: como seria possível calcular a utilidade não apenas para o indivíduo, mas para a sociedade? Os utilitaristas clássicos concebiam a sociedade como sendo um agregado de indivíduos, portanto, a utilidade social deve ser concebida como aquilo que satisfaz em maior medida o maior número de pessoas. Logo, defendiam que a legitimidade do governo repousaria na satisfação da maior quantidade de indivíduos.
Neste contexto, a atribuição do Estado seria oferecer um ambiente de segurança em que os indivíduos pudessem buscar por seus próprios interesses de maneira independente. E, para que o indivíduo pudesse defender seus direitos frente ao arbítrio governamental, fazia-se essencial a ampliação dos direitos políticos. Dito de outro modo, os utilitaristas clássicos defendiam que o governo representativo era uma maneira adequada de assegurar a população contra possíveis abusos de poder por parte dos governantes.
Dentro do campo do utilitarismo, Stuart Mill promove algumas modificações ao conceber que o ser humano estaria orientado não para a satisfação do prazer de modo indistinto, mas para o desenvolvimento mais pleno possível de suas próprias capacidades, intelecto, virtude. Deste modo, havia uma distinção qualitativa das fontes de utilidade e de prazer, sendo que o cultivo intelectual deveria ser, por excelência, o critério de diferenciação entre os indivíduos. A melhor sociedade, portanto, é aquele que permite a todos, no seu limite, desenvolver a suas capacidades enquanto seres humanos, não apenas da aptidão física, laboral, mas também o cultivo do espírito. Isto posto, é possível inferir que o princípio da equidade tem papel central na teoria de Stuart Mill, vez que todos deveriam ter a liberdade e a capacidade de se autodesenvolverem na sociedade.
Segundo o filósofo britânico, a melhor forma de garantir a equidade é por meio de um governo representativo formado a partir da participação dos cidadãos, daí Stuart Mill defender que a democracia seria não apenas o fim mais adequado, mas necessário para o desenvolvimento das capacidades humanas, principalmente a partir da ampliação do sufrágio. No entanto, apenas a efetivação do governo representativo não seria suficiente para solucionar o problema da liberdade, pois ainda haveria o risco da tirania social, ou seja, do domínio de um grupo sobre outro, a chamada “tirania da maioria”, conceito que Stuart Mill toma de Tocqueville.
Stuart Mill entende que o perigo residente na democracia é aquele da supressão das diferenças individuais por meio do estabelecimento de valores correspondentes à opinião majoritária. Isso ocorre quando se impõe uma forma de vida condizente com a vontade da maioria em detrimento do desenvolvimento de opiniões e formas de cultura minoritárias, formando, assim, a “tirania da maioria”. Neste contexto, uma decisão que pode ser boa para um maior número, pode, ao mesmo tempo, representar limitações importantes e mesmo opressão para minoria, restringindo a possibilidade destes indivíduos se desenvolverem na sociedade. Daí uma crítica de Mill ao utilitarismo anterior.
Para mostrar os efeitos prejudiciais da tirania da maioria, Stuart Mill utiliza, fundamentalmente, dois argumentos, o primeiro deles é o da falibilidade. Se o indivíduo assume que suas ideias são corretas, ainda assim ele não pode impô-las a outros nem impedir que se manifestem. Isso porque, para Mill, o ser humano é um ser falível, e em razão dessa falibilidade, a manifestação de opiniões diversas deve ser permitida. Silenciar uma opinião é assumir a própria infalibilidade.
Em vista disso, Mill defende que nenhum governo tem autoridade para decidir por toda humanidade, excluindo de todos a possibilidade de julgamento. Do contrário, os governos estariam assumindo que a certeza que têm da incorreção da opinião é uma certeza absoluta, pretensão que se choca com a falibilidade humana. Neste contexto, a possibilidade de errar, própria do ser humano, se presta como fundamento para o exercício da liberdade de expressão.
Ao afirmar que a aceitação plena de uma ideia, crença, valor, só se desenvolve a partir do confronto com outras formas de pensamento, caso contrário, o que se tem é apenas conformismo e não aceitação, Stuart Mill assume uma concepção liberal pluralista, segundo a qual a verdade não deve ser entendida como algo pleno e acabado, sendo alcançada na medida em que a sociedade avança e, este avanço se dá por meio do confronto de ideias, momento em que os seres humanos exercem sua racionalidade.
O segundo argumento levantado por John Stuart Mill afirma que a única maneira de conhecer integralmente uma matéria é ouvindo os diferentes pontos de vista sobre o mesmo tema, aspecto vital para o aprimoramento do conhecimento. Impedir a manifestação de uma opinião, afirma Mill, é impedir o desenvolvimento da raça humana, tanto da geração presente quanto da posteridade. Nesse contexto, os efeitos da “tirania da maioria” são extremamente prejudiciais, ao restringir não apenas o aperfeiçoamento dos indivíduos, assim como limitar o avanço intelectual da humanidade como um todo.
Por conseguinte, Mill se preocupa não apenas com a tirania do Estado, mas também da sociedade, vez que qualquer forma de tirania, seja da maioria ou da minoria são extremamente prejudiciais, ao comprometer a formação do indivíduo, ponto essencial para a configuração da liberdade. Tal argumento, permite ao filósofo inglês afirmar que a incorporação dos segmentos populares na vida política é essencial para preservar a liberdade inglesa dos interesses egoístas da classe média. Portanto, há no pensamento de John Stuart Mill um esforço para enquadrar e responder
às demandas do movimento operário inglês que, por volta de 1830-40, adquire consciência de classe, fato que conduz à mudança de atitude política frente aos patrões, desembocando, na segunda metade de 1840, no movimento cartista.
Embora o indivíduo não precise prestar contas à sociedade por suas ações, desde que elas sejam apenas de seu interesse, quando se tratar de ações que causem prejuízos aos interesses de outros, a pessoa pode ser submetida a sanções, para fins protetivos. Portanto, tal ingerência só se torna legitima quando pautada no “princípio do dano”, o qual deve reger de modo absoluto as relações entre a sociedade e o indivíduo. Destarte, a única limitação legítima da liberdade é aquela motivada pela prevenção de danos aos outros.
Assim sendo, o indivíduo tem autonomia para agir da maneira como os seus interesses lhe impelirem, desde que não atrapalhe a realização do mesmo por outrem. E, em caso de prejuízo a um outro membro da sociedade, o agente provocador do ato deve arcar com as consequências de seus atos a serem estabelecidos pela comunidade jurídica, com o objetivo de manter a segurança.
Além da não intervenção do Estado e da sociedade na vida privada das pessoas, a efetivação da liberdade pressupõe que sejam salvaguardados os meios necessários para que os indivíduos possam corrigir a sua falibilidade e construir a sua individualidade, isto é, a garantia da educação, essencial para o desenvolvimento humano. A individualidade deve se sobrepor à uniformidade social massiva, decorrente não apenas da tirania, mas também da utilização equivocada da democracia.
Neste sentido, o maior esclarecimento por meio da instrução permitiria distinguir os mais capazes dos menos capazes, pois, segundo Mill, embora os meios de instrução tendessem a se expandir, oferecendo oportunidades iguais para todos, isso não implicava que todos alcançassem o mesmo grau de esclarecimento, vez que se tratava de escolhas pessoais. Por isso, conquanto Mill defendesse a ampliação do sufrágio, afirmava que o voto dos mais instruídos deveria ter um peso maior.
Com efeito, John Stuart Mill é um intenso defensor da liberdade individual, empregando ainda grande esforço para justificar a necessidade e a utilidade da liberdade de pensamento e discussão, assim como do desenvolvimento da individualidade. Assim sendo, é possível depreender que a concepção de liberdade de Stuart Mill se distanciava da liberdade, simplesmente, como não dominação. O filósofo inglês compatibilizava o conceito de liberdade com o conceito de igualdade e, deste modo, pensava a liberdade a partir do autodesenvolvimento, posição que não se resume à ótica negativa de liberdade como não coerção (BERLIN, 2002).


Bibliografia
BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: HARDY, H. e HAUSHEER, R. (orgs.) Isaiah Berlin: Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos. Revista Filosofia Política, no. 02, Porto Alegre, 1975.

WILSON, Fred. John Stuart Mill. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, edição de primavera de 2009, Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/spr2009/entries/mill/, Acesso em: set. 2017.

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