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Liberdade e Igualdade em Marx e Hayek

INTRODUÇÃO

A formação do Estado moderno se estruturou no tripé liberdade, igualdade e fraternidade, sendo que o conceito de liberdade, formulada no sentido liberal, teve diversos aportes teóricos, como Jeremy Bentham (1748-1832), John Stuart Mill (1806-1873), Benjamin Constant (1836-1891) e Friedrich Hayek (1899-1992) .  
Em 1819, Benjamin Constant pronunciou seu famoso discurso, "Sobre a Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos", no qual introduziu a distinção entre duas concepções de liberdade, pretendendo demonstrar o anacronismo por trás das definições que, intencionavam analisar a sociedade e a política moderna tendo por base a noção de liberdade dos antigos.
Os utilitaristas clássicos, como Jeremy Benthan, acreditavam no “princípio da maior felicidade” – ou utilidade – pregavam que o objetivo último das instituições políticas deveria ser a geração da maior quantidade de felicidade ao maior número de pessoas possíveis. Neste contexto, a atribuição do Estado seria oferecer um ambiente de segurança em que os indivíduos pudessem buscar por seus próprios interesses, de maneira independente. E, para que o indivíduo pudesse defender seus direitos frente ao arbítrio governamental, fazia-se essencial a ampliação dos direitos políticos.
Na obra Sobre a Liberdade, John Stuart Mill, descendente do utilitarismo, propõe uma análise do conceito de liberdade a partir do estudo dos limites do poder que pode ser, legitimamente, exercido pela sociedade e pelo Estado sobre o indivíduo. O autor defende a não intervenção do Estado na vida privada das pessoas, salvo quando se tratar de ações que causem prejuízos aos interesses de outros, sendo esta uma premissa necessária, mais não suficiente para a efetivação da liberdade, pois, conjuntamente, é preciso que sejam salvaguardados os meios necessários para que os indivíduos possam corrigir a sua falibilidade e construir a sua individualidade, isto é, a garantia da educação e da participação política, essenciais para o desenvolvimento humano.
Os autores liberais defendem, portanto, a liberdade em termos individuais, sendo que os utilitaristas defendem ainda a participação política, a partir de um governo representativo, como bases essenciais de defesa da liberdade. Hayek, no entanto, advertiu que a democracia se apresentava como uma forma desejável conquanto não interferisse na economia.
Já o conceito de igualdade tem, a partir do século XVIII, como grandes representantes, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Gracchus Babeuf (1760-1797), Karl Marx (1818-1883) e John Rawls (1921-2002).
Rousseau desnaturaliza o conceito de desigualdade, demostrando suas bases de formação a partir da propriedade privada. Para Babeuf, o conceito de igualdade aparece como ponto fulcral de sua teoria, funcionando como horizonte do que seria uma boa sociedade do futuro, em contraposição a sociedade do presente. Seguindo Rousseau, Babeuf relaciona desigualdade e propriedade. Já Rawls, analisa o conceito de equidade a partir de uma discussão ética e normativa, de forma a se opor à igualdade social ou ao igualitarismo. 
Ambos os conceitos, liberdade e igualdade, são essenciais para a configuração do Estado Moderno. O presente trabalho tem como esforço analítico investigar o conceito de liberdade e a articulação da mesma com a igualdade, a partir do quadro do pensamento político desenvolvido por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Hayek (1899-1992), com o objetivo de demostrar a postura política dos autores ao formularem tais conceitos e os prontos centrais que eles procuravam defender.
A análise de Hayek (1899-1992) sobre o conceito de liberdade e sua articulação com a igualdade aparece, principalmente, em duas obras, no Caminho da Servidão (1944) e no livro Os fundamentos da liberdade (1960). Para analisar as concepções teóricas de Marx utilizaremos as obras Crítica ao Programa de Gotha (1891), Manifesto do Partido Comunista (1848), Sobre a Questão Judaica (1844) e Manuscritos econômico-filosóficos (1844).

LIBERDADE E IGUALDADE EM MARX E HAYEK
A metodologia adotada por Hayek na obra “O Caminho da Servidão[1], escrita originalmente em 1944, pautou-se em uma abordagem comparativa dos Estados totalitários de então, como Alemanha, Rússia e Itália, com a Inglaterra e sua tradição individualista liberal.
A tese central presente no livro se fundamenta na defesa do Estado de Direito em oposição à planificação econômica. Segundo Hayek, o Estado de Direito permite a convivência coletiva ao mesmo tempo que garante o exercício das liberdades políticas, vez que as ações do governo são precedidas por normas previamente estabelecidas e, assim, impessoais, que impedem o arbítrio da autoridade estatal. Deste modo, cada indivíduo, conhecendo a priori as regras do jogo, tem como planejar suas ações.
Por outro lado, caso o Estado, sob o pretexto de realizar a igualdade, regulamentasse aspectos da vida social, planificando, por exemplo, a economia, restringiria as liberdades individuais, pois a planificação econômica levaria o Estado a, inevitavelmente, intervir na vida política dos indivíduos, atingindo-lhes frontalmente a liberdade. Assim atuando, o Estado se torna arbitrário e nele o governo não se limita por normas predispostas e passa a dirigir também outros aspectos da sociedade, substituindo a vontade dos indivíduos pela igualdade, subtraindo-lhes a liberdade de decidir até se querem ou não ser iguais.
A planificação e a centralização de poder são, para Hayek, as verdadeiras causas da servidão. Portanto, a planificação econômica defendida em algumas doutrinas socialistas geraria o mesmo tipo de servidão presente nos Estados totalitários. E, mesmo que o objetivo almejado pela doutrina socialista seja louvável, como a maior justiça e equidade, os meios para atingi-lo são equivocados. Destarte, é possível afirmar que Hayek posiciona-se pela precedência da liberdade sobre a igualdade.

[a doutrina liberal] considera a concorrência um método superior, não somente por constituir, na maioria das circunstâncias, o melhor método que se conhece, mas sobretudo por ser o único método pelo qual nossas atividades podem ajustar-se umas às outras sem a intervenção coercitiva e arbitrária da autoridade. Com efeito, umas das principais justificativas da concorrência é que ela dispensa a necessidade de um controle social consciente e oferece aos indivíduos a possibilidade de decidir se as perspectivas de determinada ocupação são suficientes para compensar as desvantagens e riscos que a acompanham. (Hayek, 1990, p. 58).

Hayek se opõe, frontalmente, ao modelo de Estado como provedor da igualdade dos indivíduos por meio do planejamento centralizado, vez que, ao planejar a economia, o Estado se torna o regulamentador do modo de vida das pessoas e dirige o emprego dos meios de produção para finalidades específicas. A impossibilidade de decisões individuais livres geraria efeitos econômicos e sociais adversos. As consequências previsíveis seriam a destruição da ordem espontânea gerada pelo mercado e a interrupção do crescimento econômico.
A partir do exposto, é possível inferir que, para Hayek, a liberdade econômica seria o pré-requisito de qualquer outra forma de liberdade, vez que o comércio estruturou uma nova forma sociedade, na qual o indivíduo pode moldar seu próprio destino, ganhando a oportunidade de conhecer e escolher entre diferentes formas de vida.
Neste sentido, para Hayek, o único tipo de igualdade que podemos buscar sem destruir a liberdade é aquela perante as regras gerais, perante as leis. A igualdade de resultados, entendida como padrão de distribuição igualitária, seria fatal para a liberdade da sociedade, vez que as constituições dos indivíduos são diferentes, sendo impossível determinar de modo geral as escolhas individuais.
Em oposição à interpretação de Hayek, a teoria marxiana afirma que a igualdade não se confunde com a uniformidade de direitos, tal como defendia a ideologia liberal, e nem tampouco com a supressão de toda e qualquer posse pessoal, como entendia algumas visões socialistas. Para Marx, a igualdade pressupõe a supressão da propriedade privada dos meios de produção e, por conseguinte, de todo processo de alienação ou estranhamento[2] que impossibilita a realização humana.
No livro Manuscritos Econômico- Filosófico, mais precisamente na parte do livro sobre “O trabalho estranhado e a propriedade privada”, Karl Marx desenvolve a ideia do que deveria ser compreendido por trabalho alienado ou estranhado.
O autor alemão começa dizendo que o trabalho é uma atividade vital, entretanto, o advento da sociedade da mercadoria e do capital acarretou uma mutação profunda no conceito de trabalho, que deixou de ser entendido como uma atividade humana, socialmente vital e passou a ser uma forma de produzir mercadoria para outrem, visando suprir necessidades e não mais carências. Neste contexto, há a divisão do trabalho material e espiritual, considerada por Marx a real divisão do trabalho[3] (MARX, 2004).
Neste cenário, a partir da ótica do trabalhador, o produto do seu trabalho se lhe defronta como um ser estranho. A efetivação do trabalho, conduz, assim, a “desefetivação” do sujeito, que perde a noção da própria subjetividade no processo de objetivação do trabalho. [4]
Ao se ver apartado da mercadoria que produz, o trabalhador a percebe como algo externo e independente dele, portanto perde-se a noção do valor social do trabalho, que passa a ser visto apenas pela ótica do salário. Por outro lado, o salário não permite ao trabalhador consumir aquilo que produziu, deste modo, a riqueza criada por muitos é apropriada por poucos, empobrecendo aqueles muitos que a produziram, sendo esta a dialética da riqueza e da pobreza (Marx, 2004, p. 82). 
Deste modo, o trabalho se tornou uma mercadoria e, neste processo, “o trabalhador se torna quanto mais pobre, quanto mais riqueza produz” (Marx, 2004, p.80), vez que não possui acesso aos bens que produziu.
O trabalho na sociedade burguesa traz em si, portanto, uma liberdade aparente, pois supõe que o trabalhador é livre para vender sua força de trabalho, mas na verdade se torna uma forma de limitar a própria realização humana do proletariado.
Dessa feita, o conceito de igualdade guarda afinidade com o de liberdade, haja vista que só em uma sociedade de bem-estar econômico e social, livre da preocupação com a sobrevivência, os homens serão capazes de incorporar o patrimônio cultural e os valores morais que se encontrarão à disposição de todos e, deste modo, realizarem plenamente as suas capacidades e potencialidades (MARX; ENGELS, 2000).
Ao estarem livres do trabalho assalariado, realizado sob coação, os trabalhadores seriam capazes de usufruir da liberdade de uma outra forma de trabalho que possibilita a realização da própria humanidade, passando do reino da necessidade para o da liberdade.
Entretanto, a extinção da propriedade privada dos modos de produção e a emancipação social, assim como a supressão de toda base ideológica burguesa não ocorre instantaneamente. No livro A Crítica ao Programa de Gotha[5], uma das críticas realizadas por Marx ao programa lassalliano recai sobre a não compreensão sobre os dois estágios de configuração da sociedade comunista. O primeiro momento ainda apresentaria forte influência da sociedade burguesa, com a persistência das formas ideológicas da burguesia, como a igualdade formal. Nesta fase, a distribuição de direitos proporcionalmente ao trabalho dos indivíduos é ainda um direito burguês. Ou, nos seus próprios termos:

Apesar desse progresso, esse igual direito continua marcado por uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional a seus fornecimentos de trabalho; a igualdade consiste, aqui, em medir de acordo com um padrão igual de medida: o trabalho. Mas um trabalhador supera o outro física ou mentalmente e fornece, portanto, mais trabalho no mesmo tempo ou pode trabalhar por mais tempo (...) Além disso: um trabalhador é casado, o outro não; um tem mais filhos do que o outro etc. etc. Pelo mesmo trabalho e, assim, com a mesma participação no fundo social de consumo, um recebe, de fato, mais do que o outro, um é mais rico do que o outro etc. A fim de evitar todas essas distorções, o direito teria de ser não igual, mas antes desigual. Mas essas distorções são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um longo trabalho de parto, da sociedade capitalista (...) (MARX, 2012, 32/158).

Contudo, se, na primeira fase, o direito igual ainda é o direito burguês, pelo menos a exploração do homem pelo homem já foi eliminada e ninguém poderá apoderar-se, a título de propriedade, dos meios de produção. Estes são os primeiros passos em direção à sociedade de bem-estar, na qual, além das transformações dos meios de produção em propriedade comum, realizadas na primeira fase, são também suprimidas todas as disparidades da repartição do produto social. Assim,

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (MARX, 2012, p. 33/158)

Marx adverte que, uma sociedade comunista não deveria ser, em seu estágio superior, uma sociedade em que todos recebiam a mesma parcela do produto do trabalho. O lema “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades”, deveria ser o princípio que regeria a distribuição dos salários numa sociedade comunista, levando em consideração a contribuição de cada um e as necessidades individuais. Por isso a teoria de Marx não é equitativa, podendo ser interpretada como igualitária, ao se entender este conceito como algo que contorna, e não extingue, as diferenças.
Deste modo, o destronamento do edifício capitalista desenvolvido por Marx aponta claramente para a anulação da liberdade burguesa, ou nas palavras do autor, “É a supressão desta situação que a burguesia chama de supressão da individualidade e da liberdade. E com razão. Porque se trata efetivamente de abolir a individualidade burguesa, a independência burguesa, a liberdade burguesa” (MARX, 2000, p.53). A emancipação do homem alienado sepultará o proprietário burguês e a liberdade que ele tanto preza: “Por liberdade, nas atuais condições burguesas de produção, compreende-se a liberdade de comércio, a liberdade de comprar e vender” (MARX, 2000 p. 53).
O conceito de liberdade defendido por Marx é diametricamente oposto à lógica capitalista, segundo a qual o mercado seria o locus privilegiado de realização e expressão das individualidades soberanas e, propagador da liberdade, aos moldes do que defende Hayek.
Enquanto Marx fundamenta a liberdade na supressão da propriedade privada dos meios de produção, o economista austríaco entende a realização humana como fundamentada na liberdade de iniciativa econômica, compreendida pelo autor como a Liberdade em termos gerais, a partir da qual se fundamenta as outras formas de liberdades, como a liberdade individual.
Para fundamentar seu argumento, Hayek separa o conceito de valor e de mérito. O mérito em questão está ligado ao aspecto moral da ação e não ao valor alcançado por ela. O valor que as capacidades de alguém ou seus serviços têm para a sociedade não possui muita relação com aquilo que chamamos de mérito moral. O mérito é um esforço subjetivo, enquanto esse valor financeiro em questão é objetivamente mensurável, por isso, pode-se julgar com algum grau de confiança apenas o valor do resultado, não das intenções ou dos esforços.
Hayek critica, no livro Os Fundamentos da Liberdade,  as interpretações segundo as quais o fundamento da liberdade estaria na capacidade humana de autodeterminação fundamentada no esclarecimento, pois tal interpretação pressupõe um crescente controle racional sobre o mundo e si próprio, o problema, segundo o autor, é que o controle que a razão humana exerce sobre nossas circunstâncias é limitado e precário, sendo impossível controlar plenamente as consequências do que fazemos[6], por conseguinte, o que prevalece não é o esclarecimento, mas a ignorância.
Se o indivíduo possuísse todas as informações relevantes e o completo conhecimento dos meios disponíveis para tomar decisões, tudo seria uma simples questão de lógica. No entanto, os seres humanos possuem limitações cognitivas, o conhecimento e as informações estão em grande parte dispersos pela sociedade, entre os indivíduos. Por isso, o autor defende a cooperação e a competição interindividual, por meio de mecanismos impessoais, como a melhor forma de se utilizar os dados disponíveis.
Dessa forma, a liberdade individual é um poderoso instrumento que o homem possui para lidar com a sua própria ignorância, uma vez que os indivíduos, por meio da cooperação e da livre concorrência, poderão potencializar os resultados de seus esforços, conduzindo ao progresso tanto individual quanto coletivo.
Como, a liberdade individual e, neste sentido, a espontaneidade, são essenciais para o progresso da humanidade, a planificação social, ao conduzir ao bloqueio das espontaneidades, impossibilita o próprio progresso humano.
Dado o exposto, podemos identificar dois pilares importante da teoria de Hayek, a visão anti-racionalista do ser humano, entendido como um ser fundamentalmente ignorante, e o entendimento de que a base da vida social está na espontaneidade, como forma de ser natural da vida social, neste sentido, são das interações espontâneas que derivam o progresso, pois a liberdade como privilégio de poucos leva ao benefício de muitos, por gerar o progresso material e ou cultural. Deste modo, propriedade privada é entendida como um direito fundamental para que haja liberdade.
A defesa da liberdade individual em Hayek se fundamenta no individualismo metodológico defendido pelo autor, ou seja, a concepção de que a sociedade não existe para além das suas partes constituintes, sendo que o todo não pode ser considerado superior a suas partes. Aqui se encontra outro pilar fundamental da teoria de Hayek.
Dado que a liberdade se fundamenta na individualidade e na espontaneidade, disto decorre que a liberdade pressupõe a inexistência de compulsão e coerção nas relações entre os indivíduos, sendo que a coerção é entendida como estar sujeito à vontade arbitrária de outro, entendido não apenas como controle da liberdade física do sujeito como também, sobre os conhecimentos necessários à formação de objetivos, expectativas e definição de cursos de ação.
Dentro deste contexto, Hayek critica a ideia segundo a qual o homem pudesse ser livre no seu íntimo, através do uso da razão, enquanto ser consciente. Segundo o autor, as pessoas podem tirar satisfação da liberdade interior, filosófica, mas isso não se confunde com liberdade, pois liberdade de pensamento sem liberdade de ação não faz sentido, o conhecimento só se adquire por meio da experiência acumulada, só ela serve de critério para julgar as formas de organização. Há, portanto, uma defesa da liberdade de ação contra o conceito de coerção arbitrária, vez que não adianta poder pensar e não poder agir como se deseja.
É interessante notar que, Hayek reconhece que a livre concorrência e o liberalismo não são formas "naturais" da organização social, ou seja, não surgem espontaneamente na sociedade. Para que elas se estabeleçam, é preciso intervenção do Estado. Ele afirma que a doutrina liberal enfatiza que, para que a concorrência funcione de forma benéfica, é necessária a criação de uma estrutura legal cuidadosamente elaborada, “(...) e nem as normas legais existentes, nem as do passado, estão isentas de graves falhas” (Hayek, 1990, p.58). Ele, então, admite que o uso da concorrência como forma de organização social exclui certos tipos de intervenção na vida econômica, mas necessita de outros para garantir seu bom funcionamento.
Portanto, há formas de coerção admissíveis, como é o caso da lei, que deve ser entendida como o conjunto de regras universais ou de validade universal, geral, que se distingue das regulamentações fundadas em privilégios particulares. O mercado funciona bem dentro de um estado de direito, na medida em que este garante o respeito à propriedade e o cumprimento dos contratos, e oferece proteção contra a fraude.
Dessa forma, como na vida social, a coerção é incontornável, porque a própria coletividade deve impor limites mínimos ao livre curso de ação dos indivíduos, Hayek justifica a intervenção estatal somente para manutenção da concorrência e do livre mercado, que, segundo ele, são as únicas formas de garantir a liberdade, vez que as ações humanas são realizadas visando ao único objetivo de satisfação de necessidades individuais. Dessa forma, somente tem liberdade quem tem possibilidade de satisfazer suas necessidades individuais, neste contexto o dinheiro passa a ser visto como um instrumento de liberdade.

Seria muito mais certo dizer que o dinheiro é um dos maiores instrumentos de liberdade já inventados pelo homem. É o dinheiro que, na sociedade atual, oferece ao homem pobre uma gama de escolhas extraordinariamente vasta, bem maior do que aquela que há poucas gerações se oferecia aos ricos. (Hayek, 1990, p. 99)

Segundo a concepção marxiana, no Estado Moderno, a liberdade se torna sinônimo de propriedade privada e de individualidade isolada, na medida que foi interpretada de modo abstrato, a partir apenas de seus aspectos formais.

O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar a seu bel prazer (à son gré), sem levar outros em consideração, independentemente da sociedade, de seu patrimônio e dispor sobre ele, é o direito ao proveito próprio. Aquela liberdade individual junto com esta sua aplicação prática compõem a base da sociedade burguesa. Ela faz com que cada homem veja no outro homem, não a realização, mas, ao contrário, a restrição de sua liberdade. (MARX, 2010, p.49).

A propriedade privada não deve ser entendida como uma cristalização sem vida, pois se fundamenta nas relações sociais, portanto, a propriedade não é uma categoria abstrata, vazia, mas sim uma categoria histórica, suporte de relações entre homens historicamente determinados. Neste contexto, ao analisar as relações sociais que fundamentam a propriedade privada burguesa, Marx infere que tal ordenação não se configura como o espaço livre das vontades individuais, pelo contrário, a propriedade privada supõe a esfera da vontade particular com a exclusão de todas as demais vontades. Neste sentido, a propriedade privada, longe de configurar o momento da liberdade, converte-se na sua negação, isto é, no lugar do despotismo do proprietário.
Além do mais, a liberdade formal defendida pela sociedade burguesa ocorre por meio do Estado, portanto, seria uma emancipação meramente política. Na teoria de Marx, como ressaltado anteriormente, a emancipação política não se assemelha à emancipação humana, vez que a emancipação humana só pode ocorrer em uma sociedade sem classes. Deste modo, mesmo que o Estado exerça sua feição igualitária, como ocorre no caso do sufrágio universal, o Estado não consegue acabar com as diferenças materiais entre os indivíduos nem promover a plena realização humana dos trabalhadores, vez que o Estado é um instrumento de dominação da classe burguesa.
Assim como Marx critica a liberdade formal, há também na teoria marxiana uma crítica à igualdade formal, por apresentar uma visão genérica, que não distingue entre produto do trabalho, isto é, seu valor de uso, que diz respeito ao trabalho concreto (qualitativo) e o valor de troca, que se refere ao trabalho abstrato (quantitativo), pois concebe a categoria de trabalhador de forma genérica.
No livro Crítica ao Programa de Gotha, Marx argumenta sobre a inviabilidade de conceber a categoria genérica de trabalhador, vez que a sociedade ao mesmo tempo produz e também é produzida pela força de trabalho dos homens que se organizam em relações de produção historicamente especifica, assim não há o trabalho em geral, mas relações de trabalho particulares (feudais, burguesas). Por isso, a não percepção sobre a separação do valor de uso e do valor de troca impede uma crítica das relações de produção e das relações da força de trabalho na sociedade burguesa, promovendo a defesa da igualdade no sentido formal, a qual é incapaz de dirimir as necessidades particulares, daqueles que são desiguais.
Nesta perspectiva, uma alternativa para as injustiças da sociedade liberal deve visar a uma sociedade humana autenticamente emancipada e justa, não no sentido de supressão das diferenças, mas do igual atendimento das necessidades.
A noção de justiça social aparece na teoria de Hayek de forma negativa, vez que a igualdade de condições é contrária à liberdade geral, já que a plena igualdade de condições exigiria que todos nascessem nas mesmas condições e desenvolvessem as mesmas potencialidades, o que eliminaria as particularidades de cada indivíduo, ou seja, as liberdades individuais. Segundo Hayek, "a expressão 'justiça social' não pertence à categoria do erro, mas à do absurdo" (1985, p. 98).[7]

CONCLUSÃO

Para Marx, o conceito de liberdade desloca a discussão da igualdade do âmbito do Estado (uma instituição prioritariamente comprometida com a classe dominante) para o âmbito da sociedade sem classes (o lócus onde estarão ausentes diferenças e condições que podem produzir desigual posição social dos homens). Isso equivale a dizer que somente com a socialização dos meios de produção e, consequentemente, com a eliminação da propriedade privada e da exploração do trabalho, inerentes às sociedades de classe, todos poderão contar com igual oportunidade de trabalho e com salários compatíveis com a produção e necessidades de cada um. Desse modo, a postura de Marx no que tange à igualdade não implica que todos devam receber a mesma parcela do produto do trabalho, a partir de uma interpretação genérica da categoria trabalhador, mas que as necessidades de todos devam ser igualmente supridas.
Já Hayek aparece como um defensor das liberdades individuais, em particular, das liberdades de mercado, instituição que em suas regras intrínsecas de funcionamento respeitaria as escolhas dos indivíduos, ao contrário do Estado planificado, que tenderia a impor decisões e ferir liberdades. Daí Hayek afirmar que o capitalismo gera maior bem-estar ao maior número de pessoas do que o socialismo. Neste sentido, o único tipo de igualdade que se pode buscar, sem destruir a liberdade, é aquela perante as regras gerais, perante as leis, do contrário se limitaria o desenvolvimento individual e, assim, o próprio progresso.
Podemos procurar interpretar a mudança nos conceitos de liberdade e igualdade na teoria de Marx e Hayek a partir da teoria de Skinner (1904-1999). A abordagem skinneriana da História Intelectual dirige seu foco para o significado dos textos históricos como manifestações de atos linguísticos intencionais, efetuados em determinados contextos de convenções linguísticas e normativas. Deste modo, a metodologia de Skinner concentra-se no estudo da dimensão pragmática do discurso político.
Skinner priorizava o ato ilocucionário, que diz respeito às intenções do agente, ou seja, o ato de fazer por meio de palavras. Neste sentido, o significa de um texto também está naquilo que, muitas vezes não está escrito explicitamente, mas que fundamenta todo o escrito, ou seja, a intenção do autor.
 Há na teoria de Skinner, uma separação entre intenções e motivos. Os motivos de um autor estão relacionados com antecedentes externos (estrutura econômica, pertencimento de classe) enquanto as intenções dizem respeito ao plano de criar um certo tipo de obra, escrito de cera maneira, para atingir um objetivo específico, ou seja, é um ato consciente (decisão do autor). Determinar as intenções do autor seria igual determinar o sentido da obra, vez que é por meio das palavras, dos conceitos que os autores fazem política.

BIBLIOGRAFIA
BABEUF, G. Realismo y utopia en la Revolucion Francesa. Madrid: Península, 1970, p. 107-150
BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: HARDY, H. e HAUSHEER, R. (orgs.) Isaiah Berlin: Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos. Revista Filosofia Política, no. 02, Porto Alegre, 1975.
ESPADA, João Carlos – ROSAS, João Cardoso. Pensamento Político Contemporâneo. Uma Introdução. Lisboa, Bertrand Editora, 2004.
HAYEK, Frederich .A. O caminho para a servidão. Tradução: Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.
HAYEK, Friedrich August Von. Os fundamentos da liberdade; introdução de Henry Maksoud; tradução de Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle. São Paulo: Visão, 1983.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. Tradução de Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder. Petropólis: Vozes, 2000.
____________. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
_____________. Sobre a questão judaica. Tradução Nélio Schneider, São Paulo: Boitempo, 2010.
_____________. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Raniere. São Paulo: Boitempo, 2004.
MILL, John Stuart. A Liberdade. Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Parte 1.
ROUSSEAU, Jean- Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultura, 1991.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político modernoSão Paulo: Companhia das Letras, 1996. 



[1] A obra foi escrita nos anos finais da Segunda Guerra Mundial, tendo Hayek como alvo imediato à social democracia europeia, notadamente o trabalhismo inglês, além do keynesianismo, na época em ascensão na Europa.
[2] Lukcács, no livro “Para uma ontologia do ser social”, afirma que Marx utiliza o conceito de estranhamento (enfremdung) quando pretende enfatizar que o produto do trabalho humano se mostra como algo que é estranho ao próprio produtor, ou seja, como algo que, ao mesmo tempo que pertence ao trabalhador, se apresenta a ele como algo estranho, portanto a noção de estranhamento seria sempre empregada em sentido negativo. Por outro lado, Marx utilizaria o conceito de alienação, no sentido de exteriorização (Entausserung), quando pretendia enfatizar que o trabalhador exterioriza, aliena algo de si não, necessariamente, no sentido negativo. Deste modo, Marx trataria do complexo social da alienação, que compreende tanto o estranhamento, quanto a exteriorização. Sendo a alienação, necessariamente, negatividade quando é estranhamento e podendo ser negatividade/positividade quando for exteriorização. Entretanto, esta interpretação não é unânime entre os teóricos.
[3] Segundo a teoria de Marx, a divisão entre trabalho intelectual e material não existe, pois, todo o trabalhador realiza as duas formas, no entanto, a falsa percepção sobre esta diferença serve para justificar a hierarquia dentro do ambiente do trabalho.
[4] É importante lembrar que segundo a teoria de Marx, para entender o processo produtivo é necessário ter em mente a relação dialética entre objetividade e subjetividade, ou seja, não se compreende plenamente as relações de trabalho sem captar a subjetividade nas práticas sociais, tema abordado nas Teses sobre Feuerbach (1845).
[5] O livro Crítica ao Programa de Gotha foi baseado em carta de Karl Marx, escrita, ao início de 1875, para o grupo da social-democracia alemã em Eisenach. Entre os dias 22 e 27 de Maio de 1875 ocorreu na cidade de Gotha, na Prússia, o congresso de unificação dos dois grandes partidos operários alemães: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, fundado em 1864 e tendo por líder máximo Ferdinad Lassalle (morto em 1864) e o Partido Social Democrata dos Trabalhadores, fundado em 1869 e dirigido por Liebknecht, Bracke e Bebel, contando, ademais, com colaboração de Marx e Engels. Ocorre que a forma como se deu a unificação dos dois partidos implicou na sub-rogação do programa da social democracia alemã marxista, que uma vez baseada desde o ponto de vista teórico entre outros pelos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores e pelo próprio Manifesto Comunista, se submeteu no congresso ao programa político Lassaliano.

[6] Disto decorre que o voto pode tanto levar à liberdade individual, quanto se opor a ela, quando, por exemplo, uma maioria elege um governo que se opõe a liberdade individual.
[7] Hayek admite que injustiças sociais são produzidas em decorrência da implantação do livre mercado, porém afirma que tais injustiças são menos perniciosas do que a opressão causada pela planificação da economia. 

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Pergunta para entender o lugar da força: Noção de Estado é válida para todas as sociedades? 1.       A existência de formas político-institucionais diversas 2. Feudalismo : a descentralização dos centros de poder . Funções do Estado desagregadas ao longo da cadeia hierárquica feudal . Soberania fragmentada . Direito consuetudinário e igualitário 3.       Estado absoluto: processo de concentração de diferentes poderes e centralização do poder. . Modernização jurídica: direito romano, lei passa a ter aplicação universal (exceto ao soberano) . Tributação regular e organização das finanças do Estado . Início da separação público x privado . “No Estado absolutista, o processo político deixou de ser primordialmente estruturado pela contínua e legítima tensão e colaboração entre dois centros independentes de autoridade, o governante e as cortes; agora desenvolve-se exclusivamente a partir do governante e em torno deste” (Poggi, livro: a evolução do estado moderno).

A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA

Apostila Parte 1: http://www.scribd.com/doc/71646281/Scan-Doc0040 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 3:  http://www.scribd.com/doc/73691190/Scan-Doc0042 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 2: COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia . 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. REALE, G; ANTISSERI, D. História da filosofia : patrística e escolástica. v.2. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2005. 1. O PENSAMENTO CRISTÃO: A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA "Quem não se ilumina com o esplendor de todas as coisas criadas, é cego. Quem não desperta com tantos clamores, é surdo. Quem, com todas essas coisas, não se põe a louvar a Deus, é mudo. Quem, a partir de indícios tão evidentes, não volta a mente para o primeiro princípio, é tolo" (São Boaventura). A queda do Império Romano foi causada por uma série de problemas internos que fragilizaram o Império e o colocaram à disposição de invasões de outros po