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A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos

CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos. Revista Filosofia Política, no. 02, Porto Alegre, 1975.


Em 1819, Benjamin Constant pronunciou seu famoso discurso, "Sobre a Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos", no qual introduziu a distinção entre duas concepções de liberdade, pretendendo demonstrar o anacronismo por trás das visões que intencionavam analisar a sociedade e a política moderna tendo por base a noção de liberdade dos antigos.
Para entender a base argumentativa de Constant é preciso ter em mente a ideia de historicidade desenvolvida por este autor, segundo a qual a passagem do tempo histórico traz mudanças qualitativas no modo de ser da sociedade e dos seres humanos. Por isso, o conceito de liberdade pertinente em um tempo não tem validade em outro. Aqui está implícita uma ideia de historicidade que quebra a noção de tempo histórico como algo homogêneo ou cíclico, e coloca no lugar uma concepção de tempo linear, evolutiva, associada à ideia de progresso. Já no título do discurso de Constant se revela a ideia da modernidade como um período novo, que formula para si um projeto diferenciado.
Para fundamentar seus argumentos, Constant inicia o discurso verificando o sentido e as implicações do conceito de liberdade para os antigos. Segundo o autor, a liberdade para os antigos estava associada à presença do indivíduo na vida política ativa. Para Aristóteles, por exemplo, o homem era compreendido como um zoon politikós: um ser que tem sua existência fundamentada na sociedade, na atuação política, na vida em comum, em contraposição à vida privada. É preciso lembrar que tal liberdade não estava disponível a todos, pois as mulheres e escravos se restringiam aos oikós, à casa, e, portanto, não poderiam estar no espaço público, sendo concebidos como seres não livres.
Portanto, para os antigos, o gozo da liberdade se dava na ação política, sendo este o cerne da ideia clássica de liberdade. Neste contexto, pode-se compreender que o homem livre, entendido enquanto cidadão, estava desvinculado da ideia de trabalho, assim como da noção de esfera privada. Segundo Constant, os antigos não viam nenhuma contradição entre ser livre na vida pública e ter a vida privada controlada, visão que afastava a concepção clássica de liberdade da sociedade moderna.
Para os modernos, a vida privada passa a se tornar predominante, fato decorrente de dois importantes pressupostos: o comércio passa a ser o motor da vida material, a forma por excelência de promover a vida civilizada; e o território se amplia.
A partir do acúmulo de riquezas, o comércio transfere o lócus da vida do indivíduo da esfera pública para a privada. Por isso, segundo Constant, a liberdade moderna é uma liberdade civil, ou seja, voltada para a garantia da esfera de independência privada, que deve ser preservada tanto da intromissão governamental, como da intromissão arbitrária de outros indivíduos. Neste sentido, ser livre é fazer tudo que a lei omite ou não proíbe.
É preciso ressaltar que Constant não opõe liberdade política e civil, ele muda a relação entre ambas. A liberdade política é fundamental, porque sem ela, sem o direito de participação política, não seria possível defender a liberdade civil, individual. Para que a liberdade individual possa ser preservada, ela precisa ser acompanhada de perto pelos cidadãos, daí a necessidade da atuação política. Neste sentido, liberdade política é fundamental porque é um instrumento para preservar a liberdade civil.
Há, na concepção de Constant, uma vinculação entre esfera privada e esfera pública, a qual é analisada partir da noção de “interesse bem compreendido”. Segundo o autor, o interesse privado bem compreendido se vincula ao interesse público, pois, o indivíduo, ao zelar pelo interesse público, estará zelando pelo interesse privado, ou seja, estará possibilitando e promovendo seu próprio interesse privado.
Neste contexto, a melhor forma de instaurar a ordem e organizar a sociedade moderna seria através da garantia da liberdade civil, porque a participação na vida pública, juntamente com a defesa dos direitos individuais, garante a estabilidade da ordem social, daí a crítica de Constant aos defensores do absolutismo.

Portanto, na concepção de Constant, a forma de liberdade do mundo clássico não poderia ser transposta para o mundo moderno, pois a interferência do Estado na vida privada dos cidadãos traria o risco de uma tirania ou mesmo de uma forma de escravidão. Assim como não havia condição na modernidade para a participação direta, como defendida por Rousseau, por exemplo. Por isso, a solução seria uma forma de participação fundamentada na representação, sendo esta a forma da liberdade política no mundo moderno.

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