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A luta contra a dominação cultural: aproximações entre militares e o bolsonarismo


Após o fim do regime militar e a consequente proclamação da Constituição de 1988, as forças armadas brasileiras se retraíram do campo político, buscando manter relações cordiais com os ocupantes do poder civil (Godoy, 2021; Fuccille, 2021).

Enquanto retraídos do campo político, os militares buscaram fortalecer a visão interna sobre a ditadura, principalmente entre os jovens oficiais. O medo de uma suposta ameaça cultural ganhou corpo em 1989, quando o general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho publicou um texto afirmando que os comunistas buscariam o domínio das instituições culturais e de educação, sob a influência do pensamento do ideólogo italiano Antonio Gramsci (Maud, 2021, Penido e Rodriguese, 2020). O “gramscismo” e o “marxismo cultural” passam a ser identificados como “sucessores da hermenêutica leninista no movimento comunista internacional” (Godoy, 2021, p42).

Na década de 90, a luta contra o domínio cultural recebeu o auxílio de grupos mantidos por oficias da reserva, como Inconfidência e Ternuma1, ambos utilizaram o material recolhido pelos centros de informação das três Forças e reunidos no livro denominado Orvil2.

A atuação intramuros do Exército começa a mudar a partir da crise que levaria ao impeachment de Dilma Roussef. Neste período, comandantes das Forças começaram a produzir declarações que abandonavam a neutralidade e o apartidarismo. Além de declarações políticas, a partir de 20143, multiplicam-se por todo país as candidaturas militares (Chirio, 2021; Pinto, 2021; Penido e Rodriguese, 2020).

Aos poucos, Jair Messias Bolsonaro vai consolidando apoio dentro da caserna. Vale lembrar que Bolsonaro foi excluído do Exército em 1988, “por ser indisciplinado e mentir em tribunal de honra” (Godoy, 2021, p40). De fato, Bolsonaro ficou proibido de entrar nos quartéis entre 1989 e 1992, tendo sido reintroduzido à caserna em meados da década de 1990. A reaproximação com o exército ocorreu a partir do apoio do tenente-coronel João Noronha Neto, da Seção de Operações do Centro de Informações do Exército (CIE), “que convenceu a cúpula militar a se reaproximar de Bolsonaro a fim de que o Exército pudesse contar com o então deputado para defender suas pautas no Congresso” (Godoy, 2021, p41).

Ainda segundo Godoy,


O ideal da neutralidade e do apartidarismo é deixado de lado – mas não negado –, paulatinamente, pelos guerreiros digitais em nome do salvacionismo da República, supostamente traída pela sua elite corrupta e degradada por décadas de esquerdismo, que vilipendiava os homens das armas, fustigando seu prestígio social e vantagens históricas, que uma organização nacional garantia aos seus membros na época em que o Estado brasileiro era incapaz de produzir quadros para suprir todas as funções necessárias ao seu funcionamento. (Godoy, 2021, p.45)


Ao passo que as eleições de 2018 se aproximavam, mais militares se comportavam como influenciadores digitais, publicando e compartilhando conteúdos políticos, principalmente demonstrando forte apoio à candidatura de Jair Bolsonaro. Nem mesmo a portaria emitida pelo Comando do Exército consegui acabar com as manifestações partidárias (Godoy, 2021). Assim, para Godoy, ao romper a fronteira entre público e privado, “as redes sociais ajudaram a criar o ambiente em que o espaço da caserna se confundiu com o da praça pública e o do Poder Militar com o Civil. Os guerreiros digitais produzem os soldados influenciadores e, deles, extraem novos líderes de um novo partido militar4” (Godoy, 2021, p45). O objetivo do partido militar seria lutar contra o revanchismo histórico imposto pela esquerda, assim como contra as forças que buscariam domesticar as Forças Armadas, “intimidando-as e desmoralizando-as perante a sociedade nacional” (Chirio, 2021, p132).

Se as redes digitais foram importantes para a atuação pública de parte dos militares, o mesmo ocorreu no caso da ascensão da candidatura de Bolsonaro à presidência do Brasil.

São vários os paralelos possíveis entre o pensamento bolsonarista e os ideais militares. Entre eles, interessa a este texto a luta contra uma suposta dominação comunista, relatada nos trabalhos de Chirio (2021) ao analisar as matérias do Jornal Inconfidência5, formado por oficiais da reserva. Neste jornal, ela encontrou colunas e reportagens denunciando que uma


revolução comunista está em curso na América Latina e no Brasil em particular; suas principais áreas de atuação são a educação, incluindo a transmissão do conhecimento histórico, a moral, a sexualidade, as relações de gênero e as lutas de comunidades que trabalham para fragmentar a nação (negra e indígena); os meios de comunicação e a classe política são ou cúmplices neste projeto ou vendidos, inconscientes e incapazes de enfrentá-lo; finalmente, há uma orquestração internacional dessa subversão, que inclui, por um lado, os regimes e organizações esquerdistas (Cuba e Venezuela, e o Foro de São Paulo) e de outro as organizações internacionais “globalistas” (ONU) e ONGs estrangeiras. (Chirio, 2021, p.129)


Para combater o programa de dominação progressista é preciso travar uma “guerra cultural”, que nas palavras do general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho,


Pretendiam, assim, criar uma contra-hegemonia social, viabilizando as transformações que permitiriam a conquista do poder e a modificação da estrutura vigente. Passava-se da contrainsurgência à luta contra a ‘hegemonia das esquerdas nas universidades, no mundo artístico’ e pela manutenção dos valores da família, da religião e da liberdade econômica. Iniciava-se a guerra cultural dos guerreiros ideológicos da comunidade de informações” (Coutinho, 1999, Apud Godoy, 2021, p. 42)


Deste modo, o discurso anticomunista continuava vivo entre os militares, mantendo o perigo vermelho vivo e identificando a ameaça com forças políticas progressistas.

A mesma mobilização de medos pode ser encontrada no bolsonarismo. Há, nos grupos analisados6, a divulgação da existência de uma suposta organização de esquerda de âmbito internacional, que atuaria para corromper as instâncias políticas, sociais e culturais em vários níveis. É a ideia da existência do globalismo, que pretenderia instituir uma “nova ordem mundial” e para tanto, procuraria modificar o modo de pensar das pessoas (marxismo cultural), com o objetivo de alcançar a hegemonia na sociedade (revolução gramsciana). As imagens a seguir representam formas da mobilização política de medos:

Quando os militares, assim como os bolsonaristas defendem a existência de uma suposta ameaça comunista ou de uma dominação cultural, estamos diante do que a linguista austríaca Ruth Wodak (2015) chamou de mobilização política de medos. Há nos discursos sobre a dominação cultural um processo de simplificação dos problemas sociais, econômicos e culturais. E, através desta simplificação, são criados “bodes expiatórios”, que servem para nortear a percepção sobre os culpados e as prováveis soluções para os problemas postos.

Assim, neste suposto contexto de manipulação, de risco aos valores tradicionais, de ameaça à liberdade, de ataques à democracia, de usurpação do futuro das novas gerações, a solução para os bolsonaristas seria a manutenção de Jair Bolsonaro no poder, enquanto para os militares seria a não interferência dos poderes civis no campo militar, assim como a atuação dos militares na política. Portanto, há uma confluência das estratégias adotadas pelos militares e pelos bolsonaristas: mobilização de medos para a manutenção do poder.


Referência:

CHIRIO, Maud, “Da linha dura ao marxismo cultural. O olhar imutável de um grupo de extrema-direita da reserva sobre a vida política brasileira (Jornal Inconfidência, 1998 2014)”, in Martins Filho, João Roberto (org.). Os Militares e a Crise Brasileira, São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2021.

FUCCILLE, Luis Alexandre, “As relações civis-militares no Brasil ontem e hoje: muito a

fazer.” Martins Filho, João Roberto (org.) Os Militares e a Crise Brasileira op. cit.

GODOY, Marcelo, “Soldados Influenciadores: os guerreiros digitais do bolsonarismo e os tuites de Villas-Bôas.”, in Martins Filho, João Roberto (org.), Os Militares e a Crise Brasileira, São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2021.

PENIDO, Ana, Jorge M. Rodriguese Suzeley Kalil Mathias, “As Forças Armadas no Governo Bolsonaro”. Observatório da Defesa e Soberania, 14/04/2020.

WODAK, R.The Politics of Fear: What Right-wing Populist Discourses Mean, London: Sage, 2015.

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1Grupo denominado Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), criado em 1998.

2Para mais detalhes sobre o processo de elaboração e de divulgação do Orvil ver Godoy (2021), Penido e Rodriguese (2020).

3Neste período é marcado pela criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011. A CNV marca decisivamente as relações dos militares com o governo de Dilma Rousseff. Para mais detalhes consultar Penido e Rodriguese (2020); Fuccille (2021).

4A quebra das barreiras entre redes sociais e caserna, assim como a falta de capacidade de controle por parte dos militares, pode representar uma ameaça à própria democracia. Para mais detalhes ver Godoy (2021).

5Representantes do aparelho repressor, o DOI, escreveram no jornal, dentre eles o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que em 2011 passa a ser uma figura importante para as publicações. Maud (2021), discorre sobre a relação entre o Jornal Inconfidência e a direita que se desenhava no Brasil, mostrando as relações do jornal com diversos movimentos, entre eles o Movimento endireita Brasil de Ricardo Salles, e com o presidente do Instituto Liberal Rodrigo Constantino.

6Para este texto, foram analisadas as mensagens postadas em dois grupos bolsonaristas no Telegram, no período de julho a novembro de 2021. 




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