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Que democracia é essa?

“Vocês têm uma missão: são a semente da informação. E missão dada é missão cumprida. Você é um soldado em defesa da democracia”1

Imagem extraída do Facebook1


Durante as manifestações a favor do “voto impresso”, o que para alguns se chama “voto auditável” ou mesmo “voto patriota” que ocorreram em 01 de agosto de 2021, o lema Deus, Pátria e Família esteve estampado em faixas, camisas e frases de efeito. A uma pessoa que estivesse fora do Brasil e não conhecesse nada da política brasileira, esta tríade pareceria inofensiva, até mesmo louvável. Afinal, que mal poderia fazer a união entre o amor e a solidariedade (bases do cristianismo), unidos pelo respeito (base da família) e à defesa das instituições democráticas (defesa da Pátria e da liberdade)? O problema está em o que se entende por cada uma destas palavras e as consequências que disso deriva.

Quando os apoiadores de Jair Bolsonaro dizem que defendem a Pátria e grande parte deles, mesmo entre os mais radicais, dizem que defendem a democracia2, isso não significa necessariamente a defesa dos direitos de todos os cidadãos brasileiros e muito menos o combate às formas de opressão. Esta democracia que é estampada em faixas e bradada em alto e bom som pelos apoiadores de Bolsonaro tem como lema os direitos humanos para humanos direitos”, trata-se da democracia pelo e para os cidadãos de bem, os únicos dignos dos direitos democráticos.

Nesta democracia a diversidade não encontra lugar. “Somos uma só Nação” e todos aqueles que não cabem nesta ideia de nação são considerados bandidos, seja por ter cometido algum crime contra a sociedade, seja pelo tom de pele, orientação sexual, lugar de moradia, espectro político, não importa, o fato é que não são cidadãos de bem. E, portanto, estão fora do campo dos direitos, da cidadania. É a partir deste entendimento que se procura justificar frases do tipo “bandido bom é bandido morto”, “vamos exterminar a esquerda” ou caracterizar políticas públicas de “mimimi”, ou ainda fortalecer preconceitos já arraigados na sociedade brasileira.

Os apoiadores de Bolsonaro, chamado por alguns autores de bolsonaristas3, não surgiram em 2018, eles já fazem parte da história político-social do Brasil há muito tempo4, mas que após a Constituição de 1988 não encontraram espaço para ampliar suas vozes, até que nos anos 2000 encontraram o caminho das redes e das ruas. As bases de formação do bolsonarismo se aproveitaram das oportunidades políticas e discursivas existentes, isto é, da conjuntura política brasileira e da difusão de certos valores que encontraram respaldo na sociedade.

Assim, “A decepção com o PT, o descrédito do sistema político brasileiro em seu conjunto, a potência da narrativa anticorrupção da Operação Lava Jato” (Solano, 2021, p.52), o esvaziamento do PSDB e o protagonismo dos militares, forjaram o cenário propício para a emergência e o empoderamento desse fenômeno político, que dialoga com anseios de parte da população brasileira.

Por isso, é preciso sempre ter em mente que mesmo que o próprio Jair Bolsonaro diga que sua missão é desconstruir, o bolsonarismo não deve entendido como um fenômeno que se constrói apenas como um elemento de negação da subjetividade política alheia, mas também como um elemento de empoderamento da subjetividade de direita, principalmente daquela mais radicalizada. Empoderamento de um público que se sentiu silenciado, afastado da esfera pública, cultural, social e hegemônica, que foi para as ruas “cobrar os seus direitos [e não vão se] calar nunca mais”.

Estamos diante, caros leitores, da mobilização de afetos, de um processo de identificação que não diz respeito apenas a um fenômeno eleitoral, pois abarca modos de perceber e se ver no mundo, de mobilização de interpretações e disputa de significados. E os que foram às ruas no dia 01 de agosto se sentiam orgulhosos de fazerem parte da “mudança e da melhoria do Brasil”, que deve ser defendida pelos “soldados da democracia” contra aqueles que a querem destruir, que através de ações autoritárias e corruptas põem em perigo a grande nação brasileira.

E quais são estes grandes perigos para a nação brasileira? O STF e o Congresso. Mas, espera um pouco, STF e Congresso não são instituições democráticas, garantidoras e protetoras da própria democracia?

Não este STF nem este Congresso que temos no Brasil hoje, pois na visão dos apoiadores de Bolsonaro que foram às ruas neste último domingo, a nossa corte suprema só “propaga fake news” e persegue os bolsonaristas, enquanto a CPI “do circo”, como é chamada, tem como única finalidade tentar incriminar o presidente da república.


Para eles é preciso desmantelar a democracia para melhorá-la. Afinal, “lutamos pela democracia de verdade”, aquela na qual o povo, ou melhor o cidadão de bem, tem ampla liberdade. Neste contexto, a liberdade é deslocada da ideia de justiça para ser entendida como instrumento de poder de um determinado grupo.

A liberdade de expressão que foi prevista como uma barreira à censura, contra a repressão estatal, social, corporativa, para a expressão de minorias vulneráveis, de dissidentes políticos, acaba sendo usada em nome de uma ampla desregulamentação e silenciamento da justiça social. Esta noção permite o exercício da suposta liberdade sem a preocupação com os outros, com mundo e com o futuro.

Daí não ter sentido alguém falar em justiça social, em políticas públicas, já que não existe o social, é só o indivíduo que importa. Por isso é possível afirmar que não existe dinheiro público, só dinheiro do pagador de imposto”. E todos aqueles que usam sua condição socioeconômica, étnico-racial, ou qualquer outra para se "vitimizar", é um aproveitador, que por preguiça, safadeza ou através de ações corruptas recebe regalias com o dinheiro do pagador de impostos honesto. É o uso da ideia de combate à corrupção contra as políticas públicas, amparada na lógica do “cada um com seus problemas”.

Segundo os apoiadores de Bolsonaro que foram às ruas neste último domingo, para criar “o Brasil que todos sonhamos” é preciso lutar e “ocupar o espaço das mídias”, sendo que “nessa guerra, não precisamos de armas, mas das nossas vozes”. Mesmo que para alguns as armas sejam mais do que essencial, esta postura de uma guerra contra um inimigo interno que tem como ponto central a comunicação remete ao conceito de guerra híbrida5, expressão cunhada em 89 que diz respeito a tática político-militar dos EUA, baseada nas ideias de guerras fluídas, descentralizadas e simétricas, para substituir governos não alinhados.

Um dos modelos da guerra híbrida é o golpe brando preparado através da propaganda, estudos psicológicos, redes sociais, que tem por objetivo desestabilizar o governo através de manifestações de massa, e apresenta reivindicações abstratas, como democracia e liberdade.

A ideia é fomentar uma mente de colmeia, isto é, cria-se a percepção de que ao agir, o indivíduo se comportar de maneira plenamente livre e individual, sem que haja a percepção da motivação externa, coletiva que permeia a ação, daí a impressão que as revindicações sociais são horizontalizadas, orgânicas, sem hierarquias.

Os ares da guerra híbrida já rondavam o exército brasileiro em 2012 (Leiner, 2020)6, quando foi lançado o chamado projeto de força do exército brasileiro (ProForça)7, que incluía no âmbito do exército “novas ameaças”, tais como terrorismo, narcotráfico, crime organizado, proliferação de armas de destruição em massa, ataques cibernéticos, a temática do meio ambiente, questões relativas a etnias, movimentos sociais e de cunho revolucionário ou ideológico. Há neste projeto do exército a divulgação da existência de um inimigo interno e o reconhecimento da importância das guerras digitais para a conquista da opinião pública e para o êxito das operações. E, nesta guerra interna todos são soldados, e devem fazer a sua parte.

Estamos então em uma guerra híbrida? No campo teórico há autores que debatem sobre este tema8. O que é possível afirmar, com certeza, é que neste último domingo, nas ruas, os patriotas, como se auto proclamam os apoiadores de Jair Bolsonaro, foram convocados para três missões “mandar mensagens para os deputados e senadores, todos os dias até a votação do voto impresso”, “ser a semente da informação nas redes sociais contra as fake news do STF” e se candidatarem “para serem mesários, auditores durante a eleição, [afinal] você é um soldado”. E, não se pode esquecer que “isso chegou até aqui porque nós deixamos acontecer. Está em nossas mãos”, por isso “é preciso ser tão agressivo quanto os urubus do STF”.

E, caso os patriotas falhem em sua missão “o algoritmo vai continuar controlando a apuração da eleição no nosso país. E isso não é seguro. Falar que é seguro é teoria da conspiração” e “para defender a nossa família e os nossos filhos” é preciso estar disposto a lutar, por isso “Vocês estão dispostos a tomar as ruas se eles fraudarem as urnas?”

Os argumentos em torno da fraude eleitoral se utilizam da política do medo9, que tem como objetivo menos que todos acreditem nela, e mais criar uma situação na qual as pessoas fiquem cognitivamente confusas e, assim, interditar o debate público. É a velha história de semear a dúvida para causar discórdias. Para este governo quanto mais insegurança melhor.

1Fala enunciada no carro de som durante a manifestação pelo voto impresso em Campinas, em 01/08/21. Todas as palavras que aparecem entre aspas neste artigo de opinião são transcrições de pronunciamentos durante a manifestação.

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1Todas as imagem contidas neste documento foram extraída do grupo público do Facebook “Aliança pelo Brasil - Presidente Jair Bolsonaro”, divulgada em agosto de 2021.

2Para mais detalhes ver Solano, Esther. A evolução do bolsonarismo, in Journal of Democracy em Português, Volume 10, Número 1, São Paulo, 2021.

3Para mais detalhes ver Solano (2021) e LACERDA, Marina Basso. 2019. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk.

4NICOLAU NETTO, Michel; CAVALCANTE, Sávio M.; CHAGURI, Mariana M.; O homem médio e o conservadorismo liberal no Brasil contemporâneo: o lugar da família, 10/2019, Científico Nacional, 43º Encontro Anual da Anpocs, Vol. 1, pp.1-3, Caxambu, MG, BRASIL, 2019.

5Para aprofundamento ver KORYBKO, Andrew. 2018. Guerras híbridas – das revoluções coloridas aos golpes. Expressão Popular.

6LEINER, Pedro. 2020. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: Militares, operações psicológicas e políƟca em uma perspecƟva etnográfica. Alameda

8Ver Leiner (2020).

9Mais detalhes em Kalil, I., Silveira, S.C., Pinheiro, W., Kalil, A., Pereira, J.V., Azarias, W. and Amparo, A.B. (2021) Politics of fear in Brazil: Far-right conspiracy theories on COVID-19, Global Discourse, vol 11, no 3, 409–425. 


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