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Qual o valor dos dados dos alunos?

 

Com a pandemia de Covid-19 as rotinas foram reorganizadas, e muito do que era cotidiano passou por profundas modificações, como o simples ato de ir para a escola. As aulas remotas se tornaram uma realidade para grande parte dos alunos brasileiros, o que, por um lado, trouxe novos desafios para estudantes e para educadores e, por outro, aumentou a oferta de dados para as empresas digitais. O governo de São Paulo, por exemplo, ampliou uma parceria que já mantinha com a Google, a fim de criar um ambiente funcional, prático e rápido para a interação entre alunos e professores1. Eles não estão sozinhos, segundo a apuração da “Educação Vigiada”2, mais de 72% das instituições públicas de ensino no país estão usando os serviços digitais das grandes plataformas, sendo 61% do Google e 11% da Microsoft.

O que levanta a questão sobre a política de proteção dos dados dos alunos, afinal de contas estamos falando de dados de inteligência, que diz respeito a como a educação funciona no Brasil e, mais, trata-se de informações sobre os nossos cidadãos, muitos deles crianças e adolescentes, que estão sendo gerenciadas por grandes corporações norte-americanas. Vocês já imaginaram o Congresso norte-americano aceitando que os dados de suas crianças e adolescentes fossem hospedados fora do solo do país? Isso seria impensável.

Os dados sobre a educação brasileira poderiam ser utilizados no âmbito das políticas públicas, para melhorar o nível da educação nacional, em vez de ser uma moeda de troca para conseguir parcerias. As políticas nacionais preferem acreditar que é mais barato utilizar uma plataforma já pronta do que desenvolver um sistema próprio, reproduzindo uma mentalidade de colonialismo digital, sem perceber que em termos de dados comportamentais os termos “de graça” e “mais baratos” nem sempre caminham juntos.

É preciso ter em mente que as empresas digitais são capazes de transformar comportamentos em dados, que depois de tratados e relacionados produzem informações, que voltam para a sociedade em forma de algoritmos, que servem a fins externos, como econômicos, políticos ou de controle, que fogem ao conhecimento daqueles de quem os dados foram extraídos. Trata-se do processo da extração de valor a partir do excedente comportamental (ZUBOFF, 2019)3.

O processo de extração de valor a partir das informações fornecidas pelos dados digitais não abandona os velhos preceitos do capitalismo moderno, como a competitividade, busca pela maximização do lucro, a produtividade, o crescimento, operacionalizados em um novo contexto e a partir de novas variáveis, fundamentadas na extração de informação útil e predição de comportamentos a partir da vigilância (SILVEIRA, 2017; ZUBOFF, 2019)4.

A função econômica da apropriação dos metadados produzidos pelos usuários na sua navegação e interação pode ser entendido como o centro de uma nova lógica de acumulação denominada capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2018, 2019) que emerge da colisão entre, de um lado, um vetor pertencente à longa história da modernização e aos séculos de mudança social do consumo de massa para a personalização; e, de outro, às décadas de elaboração e implementação da lógica neoliberal, que procura construiu um consenso cultural em torno das trocas de mercado, como uma ética em si, capaz de servir de guia a toda ação humana, sustentada na ideia de que o bem social é maximizado caso também se maximize o alcance e a frequência das transações do mercado (HARVEY, 2008)5.

]Não se trata, portanto, de uma simples economia da atenção, aos moldes da sociedade do espetáculo de Guy Débord (1997)6, que se refere a um processo econômico e cultural no qual o espetáculo sobrepõe-se à mercadoria, tanto para estimular sua produção, quanto o seu consumo. No capitalismo de vigilância o lucro não se concentra na venda dos olhos da audiência para a publicidade, este é apenas um estágio do processo, o ponto central é o comportamento, entendido como fonte de extração. 

Aqui, mesmo as plataformas que lucram com publicidade, como Google e Facebook, tem como intenção final não a atenção do usuário, mas os comportamentos que são extraídos em forma de dados e que possibilitam prever e modelar os comportamentos em um tempo futuro.

Para transformar o comportamento em valor, o capitalismo de vigilância realiza uma textualização (ZUBOFF, 2019) de objetos, eventos, processos, a fim de alcançar uma projeção do interior dos sujeitos, o que fornece maior eficiência ao processo de predição e mesmo prescrição de comportamentos.

Neste contexto, existe uma forma de texto eletrônico do qual o usuário é o autor e o leitor, como as postagens, blogs, vídeos, fotos, conversas, "curtidas", este deixam rastros, que servem para compor uma outra forma de texto eletrônico, a qual o usuário não tem a capacidade de ler, composta por amontoados de dados que são lidos por aqueles tem o conhecimento para interpretá-los e manipulá-los (ZUBOFF, 2019). Nesse segundo texto, formado pelo excedente comportamental, os dados da experiência são utilizados como matéria-prima a ser acumulada e analisada para outros fins, que podem ser mercadológicos, políticos ou de controle. 

Para que a lógica da concorrência atravesse as esferas aparentemente autônomas da sociedade, os indivíduos são conformados a partir de certas normas, há, portanto, um processo de subjetivação/sujeição, vez que depois da captura e armazenamento de dados para processamento e mineração, as empresas formam amostras de perfis similares que servem aos dispositivos de modulação. O que eles fazem? A partir dos gostos, do temperamento, das necessidades, das possibilidades financeiras, do nível educacional, entre outras sínteses, as empresas oferecem caminhos, soluções, definições, produtos e serviços para suas amostras, ou seja, para um conjunto potencial de consumidores que tiveram seus dados tratados e analisados. O sucesso da modulação depende da análise precisa das pessoas que serão moduladas (SILVEIRA, 2017, p.84.).

Não se trata, portanto, de um processo simplesmente de automação, no qual as máquinas realizam funções que antes eram realizadas por humanos, oferecendo mais comodidade e eficiência, mas processos de informatação (ZUBOFF, 2019), a partir dos quais as máquinas produzem informações a partir dos dados sobre a realidade daqueles que as utilizam e, neste processo, interferem no modo como o usuário percebe o mundo e suas relações, ou seja, interfere na construção de si7

Em outras palavras, apesar das aparentes reivindicações de objetividade e neutralidade, os algoritmos estão tomados por decisões carregadas de valor e, deste modo, ajudam a criar o mundo que afirmam meramente mostrar (PASQUALE, 2016)8.

Estamos diante de um modelo de negócio invertido, no qual não se cobra para acessar, pois o acesso é que dá dinheiro, gerando, no caso da educação, uma exploração comercial velada da atividade educativa. A solução para este problema seria a criação de tecnologias nacionais, pautadas no código aberto, capazes de promover uma real melhoria educacional que se afastasse da simples lógica mercantil, de compra e venda de dados comportamentais.

Thatiane Moreira

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1Para mais detalhes ver: https://www.educacao.sp.gov.br/noticias/professor-aprenda-ativar-suas-turmas-no-google-classroom/

2Para mais detalhes ver: https://educacaovigiada.org.br/

3ZUBOFF, S. The Age of Surveillance Capitalism - the fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs. 2019.

4SILVEIRA, Sergio Amadeu. Democracia e os códigos invisíveis: como os algoritmos estão modulando comportamentos e escolhas políticas. Edições Sesc, 2019.

5HARVEY, David. O Neoliberalismo: História e Implicações. São Paulo, Edições Loyola, 2008.

6DÉBORD, G. A sociedade do espetáculo. Río de Janeiro: Contraponto, 1997.

7É preciso ter claro que não se trata de um ataque às tecnologias, mas sim a lógica de poder que está por trás destas tecnologias

8PASQUALE, F. The black box society. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2015.


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