Pular para o conteúdo principal

Mídias sociais e teorias da conspiração: podem interferir nas eleições?

 

(imagem Pixabay)


Mesmo antes de as redes sociais se tornarem parte da rotina de muitos indivíduos, as falsificações de notícias seguiam ritmo intenso1, o que ocorre no século XXI é a ampliação do alcance e aprofundamento do processo de desinformação, atacando as verdades que poderiam ser objetivamente descritas, ou seja, a verdade dos fatos.

É preciso ter em mente que desinformação não se refere apenas a uma informação pela metade ou mal apurada, mas de uma informação falsa intencionalmente divulgada, para atingir interesses de indivíduos ou grupos, através de “narrativas jornalísticas”, propagadas como se pautadas em fatos, que competem com notícias reais, em termos de estilo e linguagem, com a intenção de ganhar credibilidade (TANDOC JR. et al, 2018).

As plataformas digitais, principalmente as mídias sociais, aparecem como ambiente propício para a divulgação e propagação de desinformação2, dado que por serem canais de compartilhamento permanentemente abertos entre os atores, permitem a difusão das informações de modo mais rápido, mais fiel e mais facilmente escalável (BOYD & ELLISON, 2007).

Dentro deste contexto, emerge a disputa discursiva que ocorre nas redes sociais, entendida como uma disputa pela visibilidade (construída pelo alcance do discurso entre os vários sujeitos da rede, como no aparecimento nos trending topics, no caso do Twitter) necessária para a construção da legitimidade (obtida através da reprodução e consequente assujeitamento aos enunciados, ou seja, pelos retweets, por exemplo).

Há dois elementos importantes que modulam o espalhamento da desinformação dentro das redes sociais (RECUERO et al, 2019), (1) os algoritmos de visibilidade dessas ferramentas (que formam as bolhas digitais), os quais selecionam o que será visto pelos atores com base em suas próprias ações e nas ações de sua rede social; (2) as escolhas dos atores, que decidem o que vão compartilhar, publicar ou tornar visível à sua rede social.

A estrutura da desinformação, apoiada nas bolhas digitais, opera de modo a legitimar as notícias fraudulentas como sendo “verdadeiras”, vez que cria narrativas pautadas em preconceitos e visões de mundo dos atores sociais inseridos em certa bolha (viés de confirmação), que são ecoados através dos retweets (as denominadas câmeras de eco), procurando construir um ambiente de pertencimento e engajamento (NUNES; LUD; PEDRON, 2018:65).

Como nas redes sociais a propagação da mensagem depende da ação da audiência, o desejo leva vantagem sobre o pensamento, de modo que o sensacional predomina sobre o factual3, o sentimento ou sentimentalismo predomina sobre o argumento, característica que leva às notícias fraudulentas a repercutirem mais do que as verdadeiras, criando um ambiente propício a uma prática antiga, que vem ganhando força e escala em contextos eleitorais, tendo como um dos expoentes o Q-anon: as teorias da conspiração.

Se você ainda não ouviu falar desta sigla, ela representa um usuário anônimo de fóruns de conversa na Internet, que em 2017 começou a se apresentar como um informante de dentro do governo norte-americano. Segundo este usuário, existira uma espécie de seita satanista e pedófila que controla a décadas todas as esferas do Estado e da vida social. Esta seita seria composta de bilionários, membros da mídia e de Hollywood, além de políticos e agentes de inteligência. Segundo este suposto informante, Trump resolveu combater o satanismo e a pedofilia, por isso ele se candidatou à presidência e, por isso sofre tantas críticas de artistas e de parte da mídia.

Como Trump sempre foi um homem rico e influente, tinha ciência da existência desta seita diabólica, sendo que a única forma de acabar com tal rede poderosa seria ter mais poder do que eles, por isso Trump teria se candidatado à presidência dos Estados Unidos. Os adeptos da teoria acreditam que haverá um dia em que o governante libertará toda a humanidade através da verdade, chamada de a tempestade (“the storm”), na qual os infratores serão presos ou executados.

A esperança da chegada deste dia da revelação torna a teoria Q-anon uma ferramenta eleitoral poderosa. Assim, em vez de ser uma simples teoria macabra, ela encontrou pontos reais com o poder, alcançando adeptos dentro da política dos EUA.

Por mais que a teoria do Q-anon tenha suas raízes na cultura e no imaginário norte-americano, ela encontra ressonância no Brasil. Pensemos nas principais características desta teoria: como a existência de uma rede de pedofilia que precisa ser eliminada a todo custo, que teria como expoentes pessoas que apresentam posição progressista publicamente, ideia que se associa a noção de que o presidente seria uma espécie de salvador ou libertador.

Encontramos no Brasil um alinhamento tanto nas táticas quanto na finalidade, que consiste em vender a ideia de que se está lutando contra um poder oculto, danoso para a sociedade, o que conduz à necessidade de confiar no plano daquele que está no governo. No caso brasileiro, a ideia de “luta contra um poder obscuro” ganha forma em diversos temas, entre eles a pedofilia, debate que saiu do campo jurídico e se fortaleceu cada vez mais no âmbito político-partidário.

Neste contexto, a fim de analisar o alcance e o enquadramento dos discursos em torno da pedofilia no Twitter brasileiro, analisei 5.000 tweets extraídos4 no dia 13 de setembro, data em que circulava a polêmica em torno da produção francesa Cuties que estreou no Netflix brasileiro em 10 de setembro. O filme foi acusado5 por muitos de realizar apologia à pedofilia, ao mostrar cenas sexualizadas de meninas menores de idade.

As redes dos tweets podem ser observadas no grafo abaixo:

As partes em tons mais avermelhados representam as comunidades (ou clusters6) formadas por mensagens contra a pedofilia, que ao mesmo tempo realizam uma politização (partidária) do tema e apoiam o atual chefe do executivo brasileiro. Enquanto as comunidades que apresentam tons mais azulados são as que criticam a pedofilia ao mesmo tempo que se opõem à politização da mesma.

A rede em azul apresentou 1190 nós (usuários) e 1239 arestas (relações), com 39 comunidades, enquanto a rede em vermelho apresentou 1777 nós, 1913 arestas e 52 comunidades. O grau ponderado médio da rede em vermelho, o qual indica a diversidade das relações foi de 1,077. Já nas redes em azul, o grau ponderado médio foi de 1,047 e, como esta média é calculada somando os pesos das ligações dos nós, isso mostra que os nós da rede em vermelho possuem laços mais fortes em comparação com a rede em azul.

É possível, assim, notar que a rede em vermelho apresenta mais relações entre as comunidades, possibilitando que as mensagens circulem, sejam compartilhadas com mais intensidade, de modo que a veracidade da interpretação ganhe legitimidade dentro deste grupo. É o processo de criação de enquadramentos, de interpretação sobre os fatos, que no caso das redes sociais, se afirmam e se legitimam a partir do compartilhamento.

A partir da codificação das mensagens, ou seja, ao se relacionar ideias e dados, através do software Atlas.ti, dos quinze tweets com maior grau de entrada (Indegree), representados pela quantidade de conexões recebidas (menções ou retweets)7, foi possível perceber a mesma partidarização da pedofilia presente no grafo, na qual de um lado estaria os opositores ao atual governo brasileiro, rotulados de “esquerda”, “comunista”, “mídia opressora”, que teriam como caraterísticas defender a pedofilia (5 menções8) e mentir para a população (2 menções), enquanto do outro lado estaria os que defendem a vida e os valores tradicionais (3 menções), sendo aqueles que “combatem o sistema poderoso e corrupto” (6 menções). Dentro os tweets analisados apenas em dois deles apareceu uma crítica ao fato da pedofilia ser colocada em uma arena de disputa partidária.

Fica claro que há uma ligação muito estreita entre “defesa da pedofilia” e “opositores ao atual governo brasileiro”, ou seja, defender uma posição política contrária aos que estão no poder aparece como sinônimo de “defender a pedofilia”, o que fica mais claro ao se analisar o índice de coocorrência (Cooc), que mostra a frequência com que os códigos estão relacionados9. A relação entre “combater um sistema poderoso e corrupto” com “esquerda defende a pedofilia” apresentou um Cooc de 0,38 e a relação com “mídia tradicional mentirosa” apresentou um Cooc de 0,29, mostrando que a construção da identidade do grupo se faz na relação entre as características que defendem e o que deve ser combatido, de modo que se está de um lado ou se está do outro.

Há, portanto, uma tentativa por parte dos apoiadores do atual presidente brasileiro de rotular os opositores como pedófilos e de se auto intitularem como aqueles capazes de defender a sociedade brasileira desta ameaça. É preciso ter em mente os perigos por trás destas teorias, que não são simples devaneios de pessoas alucinadas. Não é porque uma ação se baseia em uma mentira que ela não se torna real.

Por Thatiane Moreira


Notas

1Vale lembrar a campanha de inverdades movidas pelo governo de George W. Bush, em 2003, com jornais de reputação e de grande alcance corroborando a história.

2A noção de desinformação foi criada para melhor delimitar o entendimento sobre fake news, focando, principalmente, na intencionalidade, ou seja, a desinformação é uma informação falsa propositalmente fabricada ou manipulada para enganar um grande público, para causar dano a algo ou alguém.

3Não significa que as redes sociais devam ser interpretadas como necessariamente uma tecnologia opressiva, é preciso notar que elas abriram novos canais para o diálogo e mobilizações, que desempenharam um importante papel perante Estados pouco abertos ao diálogo, em episódios como a Primavera Árabe, aprimorando, assim o debate público e impondo agendas de mais transparência e accountability à máquina pública. O grande problema das redes está na concentração de propriedade e os moldes monopolistas com os quais elas se apossam do fluxo das comunicações digitais em todo o planeta.

4Extraídos através do Facepager e analisado através das ferramentas Gephi e Atlas.ti.

5Para mais detalhes ver: https://oglobo.globo.com/cultura/cuties-que-critica-publico-estao-dizendo-sobre-filme-da-netflix-acusado-de-sexualizar-criancas-24634728

6A clusterização é um processo frequentemente usado na análise exploratória dos Grafos. Refere-se ao processo de classificar os nós ou os links (edges ou ligações) de forma que aqueles com determinados atributos ou propriedades similares fiquem no mesmo "conglomerado".

7Os nós com maior grau de entrada são considerados nós influentes na conversação na rede, de modo particular, porque seu discurso é reproduzido e legitimado.

8Quando me refiro a menções, significa quantas vezes este código apareceu dentro das quinzemensagens analisadas.

9É um número entre 0 e 1 e quanto maior ele for mais forte é a relação entre os dois códigos, segundo os padrões do Atlas.ti uma correlação com coeficiente acima de 0,2 é considerada forte.


Bibliografia

BOYD, D.M.; ELLISON, N.B. Social network sites: definition, history, and scholarship. Journal of Computer-Mediated Communication, v. 13, n. 1, p. 210-230, 2007. Disponível em: <http://jcmc.

indiana.edu/vol13/issue1/boyd.ellison.html>. Acesso em: 3 dez 2019.

NUNES, Dierle; LUD, Natanael; PEDRON, Flavio Quinaud. Desconfiando da (im)parcialidade dos sujeitos processuais: um estudo sobre os vieses cognitivos, a mitigação de seus efeitos e o debiasing. SALVADOR: Juspodium, 2018. P. 65.

TANDOC JR., E. WEI LIM, Z & LING, R. Defining “Fake News”. Digital Journalism, 6:2, 2018, p. 137-153, DOI: 10.1080/21670811.2017.1360143.

RECUERO, R.; Gruzd, A. Cascatas de “Fake News” Políticas: Um estudo de caso no Twitter. GALÁXIA (PUCSP), v. 41, p. 31-47, 2019.

_____________________________________


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Existe um temperamento próprio de cada sexo? Resenha Sexo e Temperamento - Mead

Na introdução do livro “Sexo e Temperamento”, Margaret Mead (1901-1978) discorre sobre a construção dos valores sociais, a partir das características valorizadas e desvalorizadas nas sociedades, mostrando como estas não são fixas, variando no tempo e no espaço. A autora procura mostrar que valores sociais conduzem os indivíduos a certos tipos de temperamento e à aceitação de padrões de comportamento. Para fortalecer seu argumento, Mead mostra como situações aparentemente desvinculadas podem, quando enraizados na cultura, assumir extraordinária força, como o caso dos Mundugumor, que acreditavam que uma criança que nasce com o cordão enrolado no pescoço tem maiores aptidões artísticas. Este caso, assim como outros, por serem muito diferentes da nossa cultura, vemos com distanciamento, considerando-os como frutos da imaginação. Entretanto, vemos com outros olhos quando se trata das várias diferenças entre homens e mulheres, que ainda persistem em nossa sociedade, as quais se procurou

GIDDENS: O ESTADO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

Pergunta para entender o lugar da força: Noção de Estado é válida para todas as sociedades? 1.       A existência de formas político-institucionais diversas 2. Feudalismo : a descentralização dos centros de poder . Funções do Estado desagregadas ao longo da cadeia hierárquica feudal . Soberania fragmentada . Direito consuetudinário e igualitário 3.       Estado absoluto: processo de concentração de diferentes poderes e centralização do poder. . Modernização jurídica: direito romano, lei passa a ter aplicação universal (exceto ao soberano) . Tributação regular e organização das finanças do Estado . Início da separação público x privado . “No Estado absolutista, o processo político deixou de ser primordialmente estruturado pela contínua e legítima tensão e colaboração entre dois centros independentes de autoridade, o governante e as cortes; agora desenvolve-se exclusivamente a partir do governante e em torno deste” (Poggi, livro: a evolução do estado moderno).

A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA

Apostila Parte 1: http://www.scribd.com/doc/71646281/Scan-Doc0040 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 3:  http://www.scribd.com/doc/73691190/Scan-Doc0042 (Livro "Fundamentos da Filosofia" digitalizado); Apostila Parte 2: COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia . 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. REALE, G; ANTISSERI, D. História da filosofia : patrística e escolástica. v.2. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2005. 1. O PENSAMENTO CRISTÃO: A PATRÍSTICA E A ESCOLÁSTICA "Quem não se ilumina com o esplendor de todas as coisas criadas, é cego. Quem não desperta com tantos clamores, é surdo. Quem, com todas essas coisas, não se põe a louvar a Deus, é mudo. Quem, a partir de indícios tão evidentes, não volta a mente para o primeiro princípio, é tolo" (São Boaventura). A queda do Império Romano foi causada por uma série de problemas internos que fragilizaram o Império e o colocaram à disposição de invasões de outros po