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O emergir do novo: o papel da educação


Desenhos Animados, Crianças, Criança, Infância
Ao pensar sobre o mundo de hoje, mais especificamente o Brasil, sinto-me numa espécie de Ensaio sobre a Cegueira – Saramago que me perdoe a adaptação. Como se vivêssemos em um mundo com um grande contingente de cegos, que por não conseguirem ver, se deixam guiar por tutores, seres iluminados, possuidores da verdade, que através de seus discursos se incumbem de descrever e explicar a realidade.
Neste mundo, as experiências não importam, o que vale mesmo são os discursos, as deduções lógicas. Mas não qualquer discurso, apenas os dos tutores oficiais, qualquer um que pretenda se contrapor vai ser entendido como um mentiroso, um manipulador, um perigo para a estabilidade social. Nesta sociedade, a existência do diferente, daquele ou daquilo que não se enquadra na norma pré-estabelecida é vista como uma ameaça, que precisa ser aniquilada, para o próprio bem da sociedade.
Aqueles que ainda possuem uma certa visão, mesmo que, às vezes embaçada, são perseguidos, seus discursos são desacreditados ou abafados, de modo que alguns cegos nem chegam a saber de sua existência, enquanto outros não o entendem, pois o que ouvem são grunhidos, distorcidos pela própria incapacidade de pensar.
Qual o papel da escola e do educador numa sociedade como esta? Seria apenas a de transmitir o discurso dos tutores oficiais, e continuar a produzir contingentes de cegos, para o bem da ordem social? Afinal, segundo o atual ministro da educação, seguindo a linha do guru da sabedoria, é preciso combater o “marxismo cultural”, de modo que os alunos não se tornem “idiotas úteis”, vez que, para o ministro, os alunos são incapazes de analisar a realidade e pensar por conta própria, sendo, portanto, presas fáceis para o “marxismo cultural” (termo que abrange tudo aquilo que vai contra o discurso oficial).  
Precisamos lembrar que as crianças não nascem cegas, no sentido que o termo está sendo empregado no texto, como aqueles que precisam de tutores por toda a vida, por serem incapazes de pensar por si. Elas são a materialização do novo, como uma irradiação de potências que precisam ser educadas (não manipuladas!), para se inserirem num mundo já construído, e assim, ter as ferramentas para melhor desenvolver suas capacidades. Aqui está a função e a responsabilidade do educador: fazer com que o completamente novo entre em contato com um mundo já velho, de modo que aquele entenda como se configura o mundo no qual acabou de chegar, sem que as traças do velho corroa toda sua potencialidade.
Neste sentido, a educação, pensada aos moldes de Hannah Arendt, é a busca de compreensão do mundo e não significa, somente, uma transmissão de conhecimentos, no sentido das matérias da grade curricular. A partir da educação, a criança aprende a respeitar e a preservar o mundo como seu próprio lar, onde as pessoas convivem na pluralidade e se distinguem na sua singularidade.
Segundo Arendt, a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda de novos e dos jovens (Arendt, 2011, p.247). Quando não assumimos a responsabilidade perante o novo, abrimos a possibilidade de destruição da pluralidade, comprometendo, assim, as condições para se agir politicamente, vez que “o súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto, mas aquele para quem não existe a diferença entre o fato e a ficção, (isto é a realidade da experiência), e a diferença entre o verdadeiro e o falso, (isto é, os critérios de pensamento)” (Arendt, 1983, p.526).
 É verdade que Arendt não defende que se ensine política para as crianças e jovens, a autora afirma que é preciso respeitar o processo de desenvolvimento e maturidade de cada fase, entretanto, [...] sem ser intrinsecamente política, a educação possui um papel político fundamental; trata-se aí da formação para o cultivo e o cuidado futuro para com o mundo comum, o qual, para poder ser transformado, também deve estar sujeito à conservação. (Arendt, 2010, p.64). Portanto, pensar que educação se restringe ao ensino da matéria A ou B é eximir-se da responsabilidade perante o novo, e afirmar que a educação precisa seguir o discurso dos tutores oficiais, para assim se preservar a liberdade e o convívio social, é comprometer aquilo que se diz defender.
Mas nem tudo são trevas nesta sociedade de cegos, afinal, como bem nos lembrou Arendt, o nascimento de cada criança representa um novo começo no mundo e com ela uma nova história se inicia, possibilidades que estão além dos nossos velhos sonhos.

Bibliografia
ARENDT, Hannah. Da Revolução. Tradução de Fernando Didimo Vieira. São Paulo: Ática, 1983.
_______________. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rev. Adriano Correia. 11ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
____________. A Crise na Educação. In: Entre o Passado e o Futuro. 7.ed. São Paulo: Perspectiva. 2011.

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