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Resenha: O Príncipe de Maquiavel


Nicolau Maquiavel nasceu em Florença em 1469 e morreu em 1527. Aos 29 anos passou a ocupar o cargo de segundo secretário na chancelaria, de onde pode observar e estudar o comportamento daqueles que ocupavam o poder. A Itália era, no final do século XV e início do século XVI, uma série de principados, cidades-estados e possessões eclesiásticas rivais entre si que faziam e desfaziam alianças a todo momento. Um cenário marcado por guerras políticas, batalhas, conspirações e luta pela conquista e manutenção do poder.
O escritor florentino recebeu exímia formação humanista, que englobava o aprendizado do latim, gramática, retórica e das grandes obras da literatura clássica, como Cícero e Sêneca, tal formação era muito valorizava na época, tanto que segundo Skinner (SKINNER 1988), o processo de escolha para os principais cargos da chancelaria exigia, além de talentos diplomáticos, exímio conhecimento nas disciplinas humanistas, fato que auxiliou a entrada de Maquiavel na diplomacia.
Com a ascensão dos Médicis ao poder, Maquiavel foi acusado de conspirador, sendo forçado a se afastar da vida política e se exiliar em região remota, longe do centro político de Florença. O tempo do exílio foi, para Maquiavel, um tempo de reflexão e de produção intelectual. Neste contexto, foi criado o livro O Príncipe, escrito em 1513 e publicado em 1532, dedicado à Lorenzo de Medici (1492-1519), com a esperança de voltar a ocupar o cargo na chancelaria.
A estrutura do livro O Príncipe segue a forma do espelho de Príncipe, comum na época, ou seja, o modelo tradicional de se colocar conselhos para o governante. Segundo a análise de Skinner (1988), Maquiavel utiliza o modelo tradicional do espelho de príncipe, não com a intenção de se apresentar como um conselheiro de tiranos, como defendia Leo Strauss (1958), mas sim como herdeiro da tradição republicana, mesmo que na obra O Príncipe, Maquiavel trate do principado muito mais do que da república. Contra a visão de Maquiavel como conselheiro de tiranos aparecem também Gramsci (2000) e Rousseau (1978), o segundo defendendo que Maquiavel escrevia para os governados e o primeiro colocando que Maquiavel queria construir uma vontade artificial, para unir os italianos em busca da unificação.
Nos capítulos iniciais do livro O Príncipe, capítulos I ao XIV, Maquiavel procura caracterizar as formas de governo, os diferentes tipos de principados existentes em sua época e a política daquele período, influenciado, sobretudo, pelos contatos que teve com os grandes líderes durante as missões diplomáticas.
Ao analisar os tipos de governo, Maquiavel procede uma análise sobre o conceito de Estado. Neste ponto é preciso salientar que o conceito de Estado, na Florença do século XVI, se referia não apenas ao poder político, mas também a sua arquitetura e construção, relacionada a ideia de arte ou artesania. O Estado para Maquiavel se referia, portanto, a determinada arquitetura, que exigia certa perícia, certa arte, implicada na construção da ordem política.
Inicialmente, Maquiavel discorre sobre as estruturas dos principados, assim como os diferentes modos de conquista territorial. Segundo o autor florentino, existem dois tipos de principados: os de poder centralizado e os de poder dividido. O primeiro tipo é composto pelo príncipe e os servos, como ocorria, por exemplo, na Turquia, o qual se mostrava mais difícil de conquistar, pelo fato de o poder centralizado ser mais estruturado, entretanto, a manutenção do domínio era mais fácil, vez que se concentrava em apenas um centro. Já na segunda forma de principado, o poder era dividido entre os barões, representantes do poder local, e o príncipe, como ocorria na França. Um poder dividido facilitava a conquista, pois um barão, por exemplo, podia ajudar no processo de conquista do território, por outro lado, a manutenção do poder era mais custosa, afinal seria preciso agradar a interesses muito distintos, o que aumentava a chance de se criar inimigos.
Os principados podiam ser adquiridos por herança, misto ou por conquista, esta última forma poderia ser realizada com armas próprias ou com armas alheias, como ocorria no caso dos exércitos mercenários. É importante ressaltar que para Maquiavel, a melhor forma de se conquistar territórios é através do uso de armas próprias, pois baseavam suas ações na lealdade ao príncipe e não nos benefícios financeiros que poderiam alcançar.
 Depois de compreendido os tipos de principado, Maquiavel passa a analisar quais as ações que devem ser realizadas pelo príncipe a fim de conservar o poder. Segundo Maquiavel, o príncipe precisa se apoiar em boas leis (entendidas não apenas como códigos escritos, mas também como costumes) e boas armas, sendo este último o ponto mais importante. É preciso ressaltar que, ao altera as leis, o príncipe não deve alterar toda e qualquer norma, por correr o risco de alcançar o ódio do povo. Além das leis e das armas, o príncipe precisa formar colônias, as quais servirão de apoio em caso de revoltas.
A análise de Maquiavel sobre a arte de governar não se estrutura apenas em bases teóricas, possuindo também fundamentos práticos, construídos, principalmente, nos anos passados na chancelaria. A experiência na chancelaria propiciou a Maquiavel observar ativamente a arte de conduzir os negócios do Estado e formular juízos sobre a maioria dos grandes governantes da época. Entre as missões diplomáticas que impactaram a obra de Maquiavel, podemos citar:
a)      O encontro com o rei Luís XII: a partir desta visita Maquiavel pode perceber como o governo de Florença era desrespeitado na corte francesa, considerado fraco e débil. Maquiavel reconheceu as causas da franqueza de Florença na postura indecisa do governo, concluindo assim, que é necessário a um bom governante ter ações decisiva e rápida tanta na guerra como na política.
b)      Estada na corte de Duque Valentino (César Bórgia), filho do papa Alexandre VI. Bórgia possuía grande aspiração política, o que o levava a buscar continuamente a ampliação de seu território. Em diversos momentos, Maquiavel exaltou a atuação de Bórgia, como no caso da escolha do tipo de exército, quando ao invés de contratar exército mercenário, Bórgia recrutou pessoas entre seus súditos, as quais são mais confiáveis. Entretanto, o escritor de Florença percebeu que a grande fraqueza deste líder era confiar demasiadamente na fortuna e, portanto, falta-lhe perspicácia para antecipar certos acontecimentos, o que gerava decisões equivocadas, como a falta de perspicácia de Bórgias ao apoiar Della Rovere para ser papa, o qual foi muito prejudicado pelas ações do papa anterior, pai de Cesar Bórgias.
Após analisar a ação de grandes líderes de seu tempo, Maquiavel constata que a debilidade básica que todos compartilhavam consistia em uma fatídica inflexibilidade diante da mudança das circunstâncias. Em outras palavras, o bom governante seria aquele capaz de se adaptar às circunstâncias e não querer moldá-las às suas exigências. Neste ponto, Maquiavel passa a discorrer sobre as características desejáveis a um príncipe para que seja capaz de alcançar e manter o poder (capítulos XV a XXIII).
Na época de Maquiavel, a partir da influência das obras de Cícero, o conceito de virtude representava um comportamento no qual a bondade era destacada, como o ato de fazer o bem, caminho para obter honra e glória. No livro Dos Deveres, o filósofo romano definiu como virtudes necessária ao governante, a sabedoria, a justiça, a coragem e a temperança, além da honradez e da magnanimidade. No entanto, quando Maquiavel pergunta se o príncipe virtuoso deve fazer apenas o bem e responde dizendo que deve fazer o bem quando possível e o mal quando necessário, sendo que mais importante do que fazer o bem é aparentar ser bom, Maquiavel realiza uma mudança conceitual importante no conceito de virtude na política.
Contrariando o pensamento clássico e a concepção humanista de sua época, Maquiavel argumenta que o governante nem sempre poderia ou deveria agir de forma moral. Dito de outra forma, em certas circunstâncias, são necessárias atitudes contrárias às virtudes cristãs, como a esperança e a caridade, e morais, como a prudência, a temperança e a justiça, recomendadas na literatura dos espelhos de príncipe.
Deste modo, tanto Maquiavel como Cícero utilizam o conceito de virtú como sendo o conjunto de características necessárias ao governante para alcançar os mais altos desígnios, no entanto, Maquiavel afasta a ideia de que o comportamento virtuoso era ditado por um conjunto de virtudes cardiais e principescas ligada a moral. Portanto, o que é bom ou mal deixa de ser absoluto, e passa a se acomodar às circunstâncias.
Para explicar a sua noção de virtú, Maquiavel vai usar a analogia do leão e da raposa, o primeiro como representante da força, enquanto o segundo representa a astucia. O príncipe precisa usar tanto a força quanto a astúcia para comandar, pois sozinhas, ambas as formas possuem limites muito restritos de atuação.
Maquiavel promove também o resgate do sentido clássico do conceito de fortuna, ao afirmar que embora haja pontos que não se pode controlar nos acontecimentos, há outras partes que podem ser controlados pelo governante, caso tenha perspicácia, ou seja, a capacidade de calcular bem as situações. Diferenciando-se, assim, do sentido dado pelo cristianismo medieval, comum na época de Maquiavel.
Em Roma, o conceito de fortuna era uma deusa que se deixava levar por aqueles que apresentavam virilidade. Com a cristianização do império, a fortuna passou a ser associada à força cega do destino, à noção de que o ser humano é reféns dos acontecimentos. Com o iluminismo há a volta da figura da fortuna advinda da percepção romana. Sendo esta imagem que aparece em Maquiavel, ou seja, que a fortuna não pode ser controlada em sua totalidade, no entanto, é possível ganhar os seus favores e, para tanto, o príncipe precisa combinar força e astúcia, daí o conceito de virtú.
Maquiavel, portanto, mesmo inserido dentro de uma visão humanista, altera vários aspectos desta interpretação, ao introduzir, por exemplo, um novo sentido para o conceito de virtú, que muito mais do que uma mudança lexical representa uma alteração na noção de política e, consequentemente, na noção do exercício do poder. Por isso, Skinner se referir a Revolução promovida por Maquiavel, que se apoiando em bases práticas, muda o referencial das análises políticas.

Bibliografia
GRAMSCI, A. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política In Cadernos do Cárcere, volume 3; Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1990
ROUSSEAU, J.-J. Da Monarquia. 2a. ed. (livro III). In: Do Contrato Social. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
SKINNER, Quentin. Maquiavel. São Paulo: Brasiliense, 1988.

STRAUSS, Leo. Thoughts on Machiavelli. Glencoe, Free Press, 1958

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